O crânio de Helena
O ano mais longo de nossa história arrasta-se teimoso por
2017 adentro. Como o pesadelo que nos precipita num beco sem saída. E, no
entanto, seguimos despertos, num misto de esperança e desencanto, a enfrentar a
lide serpentária dos Três Poderes, com sua parcela de Napoleões de fachada na
restauração do país, de que saímos todos com decrescente espessura moral.
Uma sede ininterrupta de mídia e visibilidade parece ter
contaminado os inquilinos da República, desde o processo de impedimento, sobre
o qual me pronunciei mais de uma vez. Seja como for, é preciso encontrar uma
saída, entre os que defendem honestamente o diálogo para sair das vísceras do
labirinto. E a solução passa pelos coletivos e colegiados da política. Nenhuma
autoridade deve tomar para si a tarefa messiânica de redimir o país, como um
Preste João, escondido num teatro de sombras, no qual o tempo desvela seu
antigo fulgor.
Há um populismo difuso, no Brasil e nas democracias
ocidentais, a que nem sequer o Judiciário está imune, como é fácil concluir
nesses dois últimos anos ruidosos, com avanços inquestionáveis, mas com
retrocessos infelizes, do raro equilíbrio da balança ao desprezo das garantias
constitucionais. Houve quem argumentasse assim: casos excepcionais demandam
medidas excepcionais, que foi a expressão mais perigosa que ouvimos ano
passado.
O projeto contra o abuso de autoridade do senador Renan
Calheiros deflagrou o embate entre Legislativo e Judiciário, com um
protagonismo irresponsável de ambas as partes, como se fosse uma disputa
colonial, em mútuo desrespeito ao sistema democrático. O desfecho do caso do
senador Renan e da Mesa Diretora do Senado traduzem a temperatura de nossas
instituições, cujos representantes imaginam-se czares que exaram decretos.
Do Planalto, evidentemente, não digo palavra. O senhor Temer
tem revelado a sua estatura, no exato papel de pastor eficaz ao tanger a
perigosa “hidra” do PMDB, que, com seus múltiplos tentáculos, adquiriu na
última década outro perfil, que o distingue da era Ulysses. O senhor Temer
governa para o PMDB. E assim nos encontramos muito perto do dragão e longe de
São Jorge.
O ano só começará de verdade quando o diálogo pleno
encontrar não apenas os canais adequados, na sociedade civil, como também
interlocutores que compreendam a distância para 2018, à medida que não
arrefecem a crise econômica e a devastadora corrupção. O diálogo se impõe
porque somos todos brasileiros. Um país, não um mercado com índice Dow Jones.
Leio no “Diálogo dos mortos”, de Luciano de Samósata, no
segundo século de nossa era, o encontro no inferno entre Hermes e Menipo, em
meio a um cenário de ossos ilustres, que os poetas cantaram quando ainda eram corpos.
Ele pede ao deus que aponte quem é Helena de Troia. Tal como nós, que hoje
caminhamos às cegas e corremos o risco de perder o rosto republicano do Brasil.
Não queremos ouvir de Hermes a resposta do ano que deveria terminar: “Este
crânio é Helena”.
O Globo, 04/01/2017
Marco Lucchesi
- Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL, eleito em 3 de março de 2011, na
sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila , foi recebido em 20 de maio de 2011
pelo Acadêmico Tarcísio Padilha.
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