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Lembranças dos meus avós paternos
Ou: “Oh!
Que saudade que tenho da aurora da minha vida...” *
Emocionantes! São minhas lembranças relacionadas aos meus avós paternos José
Pedro e Hercília Melgaço, essas duas criaturas que me tocaram o coração, e
levam-me a sentir como se ainda hoje estivesse vivendo o passado, anos
atrás.
Ela, a ternura em pessoa, abençoava os netos um a um, quando entrávamos na sua
casa sempre asseada e aconchegante, todos nós carregando feixes de lenha para
abastecer sua cozinha. Ele, olhar sério e firme, mas demonstrando muita bondade
e paz. Éramos oito netos, às vezes mais um ou dois amiguinhos que iam conosco.
A diferença de idade era sempre entre 1 a 2 anos de um para outro.
Passávamos por um pequeno corredor entre a sala de visitas e a copa
(chamada sala de janta). No meio desse corredor um quarto sempre aberto porque
não havia uma porta para fechá-lo, onde o vovô ficava deitado ou sentado na
cama. Um por um, entrávamos na sala de visitas que era mantida aberta o dia
todo, passávamos pelo tal corredor em fila indiana forçada porque o
espaço era bem estreito, dávamos uma leve paradinha em frente do quarto,
saudávamos o vovô dizendo: bença vovô? Ele respondia: çoe!... Um
por um: Bença vovô? – çoe!... Bença vovô? – çoe!... Bença vovô? –Çoe!...
Chegávamos à sala de jantar e logo adentrávamos a cozinha: Bença vovó? – Deus
abençoe!... Um por um: Bença vovó? – Deus abençoe!... Bença vovó? - Deus
abençoe!...
A vovó Hercília sorria para nós, terna e carinhosamente. Inesquecíveis aqueles
cabelos branquinhos, o vestido de fustão justo na cintura, com a saia franzida... Tão limpinho...
Justamente o oposto das nossas vestes cheias de nódoas de bananas e amarrotadas
por causa das nossas estripulias.
No grande fogão a lenha o café fumegava perfumado, seu feijão tinha um
aroma sem igual.
Passávamos da cozinha para uma pequena área e ali jogávamos os feixes de
lenha ( bráááááh), no canto da parede abaixo de uma janela que trazia
iluminação solar para a sala de refeições e para o corredor; essa
parede era toda descascada e esburacada de tanto receber lenha. Nessa mesma
área, mais perto do degrau que descia para o quintal havia um banquinho baixo
onde o vovô sentava-se quando não estava no quarto. Aí ele tocava sua viola,
interrompendo apenas quando a vovó lhe servia uma fumegante xícara de café. Eu
sempre ficava impressionada com o vovô Zé Pedro por dois fatos infalíveis: se
estava tomando café, ao final emborcava a xícara no pires; se tocava viola, era
sempre a mesma canção formada por nove notas, repetindo-as sempre no mesmo tom.
Sua música não tinha letra, não tinha fim... Nunca o ouvi cantar, só tocar...
Tocar... Tocar... O vovô falava tão pouco com a gente!... Mas tocava viola e
para mim até hoje sua voz era o som da viola.
Também me impressionavam as camisas do vovô: tecido claro listradinho, com gola
de padre, todas parecidas.
Vovô José Pedro e vovó Hercília moraram por alguns anos, na Fazenda Poço Fundo
que era administrada pelo papai; acho que de três a quatro anos. À época eu
teria talvez sete ou oito anos e já observava tratar-se de um acordo, uma
espécie de rodízio entre papai e seus irmãos que também administravam fazendas;
os vovós ficavam por um tempo com um dos filhos, iam para outro, até completar
a estadia com os oito filhos. Aí começava tudo de novo. E eles, os vovós
eram felizes. E eles nos faziam felizes!
Era uma festa quando os irmãos se reuniam em casa de um deles. Reuniam-se
sempre na mesma fazenda em que vovó e vovô se encontravam. Era fascinante
vê-los chegando pouco a pouco, como heróis nas suas elegantes e lustrosas
montarias. Trajavam uma vestimenta para montaria que se chamava “culote”, botas
e chapéus de qualidade. Acompanhava-os suas esposas e um ou dois dos filhos
mais velhos. Era uma felicidade para os vovós e uma grande farra para as
crianças. Após o jantar cujo prato principal era sempre galinha ao molho pardo,
ou pato, se recolhia os pratos e a toalha da mesa e seguiam as conversas
e risadas animadas até altas horas. Até a hora de irem para a cama, as crianças
participavam de tudo, sentadas no chão da grande sala, quietas e admiradas da
sabedoria dos adultos. As visitas duravam quase sempre da sexta feira até o
amanhecer da segunda feira.
E eles partiam deixando nos corações aquela saudade feliz. Antes da
partida já se planejava para quando e onde seria o próximo encontro. Ao se
despedirem os tios ofereciam algumas moedas para as crianças, as tias
afagavam-lhes os cabelos. Tios e tias, um por um tomavam-lhes a mão direita, as
abençoavam e delas se despediam com grande afeto.
Voltava-se à normalidade, se é que se pode chamar de normal a vida
maravilhosa e sempre cheia de novidades sem fim que se levava na fazenda,
à atenção responsável dos nossos pais e, principalmente à terna benevolência de
vovô José Pedro e vovó Hercília, a luta dos dois para serem felizes e
praticarem esta arte a cada dia. Ao recordá-los, após tantos anos revivo
emocionada a companhia doce e fortalecedora dos meus avós e os classifico como “os
raros santos da terra, que até hoje me levam a cultivar a felicidade, a
despeito dos contratempos da vida”.
Eglê S Machado
Academia Grapiúna de Letras-AGRAL
Licença Creative Commons: http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/4597651
*Casimiro de Abreu
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