O Canalha Translúcido
1 de dezembro de 2016
Fartei-me com a cobertura indecente, desproporcionada e
gritantemente sintomática da morte de Fidel Castro. Ditirambos disparatados,
análises tendenciosas, críticas suaves. Excetuo palavras como as de Anna
Cecília Malmström, Comissária Europeia do Comércio: “Fidel Castro foi um ditador que
oprimiu seu povo por 50 anos. Muito estranhos todos os elogios nas notícias de
hoje”.
Estranho, mas não novo. Provém de mentalidade antiga,
embebida de complacência com toda forma de esquerdismo, mesmo o mais
extremista. Lembrei-me de crônica de Nelson Rodrigues sobre o embasbacamento
subserviente de magotes da intelligentsia brasileira e da sociedade
carioca em torno de Jean-Paul Sartre, o velho comunista, que visitou o Rio de
Janeiro.
O texto atualíssimo, profilático, é de 22 de abril de 1968:
“De onde vem meu
horror a Sartre? Foi numa conferência do mestre. Lembro-me de tudo.
Conferência, ali, na ABI. [...] Eu estava na sala superlotada. [...] Por mais
estranho que pareça, eu não prestava a menor atenção ao conferencista. Mais que
a palavra de Sartre, fascinou-me a cara dos seus admiradores. A cara! [...] A
cara dos admiradores de Sartre merecia, sim, a folha de parreira. Homens e
mulheres lambiam com a vista o filósofo. Por certo, há admirações nobilíssimas
e outras que são abjetas. Naquela tarde, e naquela sala, eu só via admirações
abjetas. [...] O meu horror a Sartre começou nos seus admiradores e, mais
precisamente, começou na cara dos seus admiradores. Só posteriormente é que
tratei de fazer uma revisão da obra sartriana. [...] Sua obra é todo um
gigantesco julgamento dos valores de vida. Vamos também julgá-lo. Sartre
recusou o Prêmio Nobel. Convém esvaziar tal renúncia de todo o falso patético,
de todo pseudossublime. O filósofo não perdeu um tostão. Pelo contrário: — foi
um gesto promocional de gênio e que serviu apenas para aumentar a sua
bilheteria. [...] Argumenta o filósofo que o Prêmio Nobel foi concedido a Boris
Pasternak. Mas quem é Pasternak? Diz ele: — ‘Um escritor que não é lido em sua
própria terra’. Vejam: — ‘Um escritor que não é lido em sua própria terra’. Aí
está o canalha, o límpido, o translúcido canalha Jean-Paul Sartre. Se disse
isso, é um canalha (e o disse num claro e deslavado documento para o mundo). E
repito: — de uma simples frase emerge todo o canalha. Vejam bem. Um crime
contra a inteligência impediu que Pasternak fosse lido em sua própria língua. E
Sartre está a favor do “crime” e contra a vítima. Pasternak é um poeta, um
romancista, um pensador que o totalitarismo soviético havia de exterminar, até
fisicamente. E Sartre não pinga uma palavra de compaixão sobre o assassinato de
um artista. (Preciso falar também de um prodigioso documento. É um manifesto de
Oitocentos intelectuais russos. E lá se faz também a excomunhão do autor em
desgraça. Oitocentos intelectuais russos, Oitocentos canalhas.) Mas a miséria
não para aí. Perguntem aos nossos intelectuais de esquerda: — ‘Vocês leram o
que Sartre disse sobre o Pasternak?’. Ninguém leu, ninguém viu, ninguém sabe. O
monstruoso documento saiu em todos os idiomas. E nós, que o lemos e o relemos,
fingimos um pequeno, irrelevante, cínico lapso de memória. Agora mesmo vejo um
telegrama de Moscou, que todos os jornais publicaram: — nove intelectuais
russos foram julgados e condenados sumariamente. Imagino se esses também
assinaram o manifesto contra Pasternak. Leiam os nossos próximos suplementos
dominicais. Os nossos intelectuais de esquerda não vão exalar um mísero e tênue
suspiro. É um crime contra a inteligência. Mas Jean-Paul Sartre disse, aqui,
que a Rússia era ‘a Revolução’. E, como tal, tem todo o direito de enfiar na
cadeia a canalha intelectual. [...] Nunca a inteligência se degradou tanto”.
No meio da geral louvaminha a Sartre no Brasil, Nelson
Rodrigues teve a coragem singela de, com base em um fato, exprimir o óbvio
ululante: o homem era um canalha translúcido. Até agora, de ninguém escutei o
óbvio ululante: Fidel Castro foi um canalha translúcido. E entre a montanha de
fatos para embasar o juízo, lembro esses: foi tirano implacável, torturador de
seu povo, lambe-botas de Kruschev e Brejnev; destruiu os sonhos de gerações de
cubanos. No Brasil, esse amigo próximo do PT, do frei Betto e de gente
assemelhada treinou e estimulou guerrilheiros que, na tentativa aloucada de
impor ao povo brasileiro renitente a ditadura do proletariado, ceifaram a vida
de militares e policiais heroicos, bem como de civis inocentes, hoje em geral
dolorosamente esquecidos, tantas vezes com a memória injustamente escarnecida.
Eu me associo enfaticamente à alegria dos cubanos exilados na Flórida,
esperançosos com a perspectiva de Cuba regressar à trilha da liberdade, da
prosperidade e harmonia social, da qual foi arrancada brutalmente há mais de 50
anos.
Péricles Capanema
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