O Brasil de amanhã
Na madrugada de quarta-feira passada — os crimes acontecem
preferencialmente enquanto todos dormem — a Câmara dos Deputados votou uma lei
que, no dizer da presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia,
pode contrariar a independência do Poder Judiciário. A ministra definiu à
perfeição o sentido da lei contra o abuso de autoridade de iniciativa do
deputado Weverton Rocha, investigado por crimes contra a administração
pública.
Esse jabuti colocado no pacote anticorrupção, desfigurando
um projeto apoiado por mais de dois milhões de assinaturas, visa diretamente o
juiz Moro e os procuradores da Lava-Jato. O episódio serviu para deixar claro
que o principais inimigos da operação são os parlamentares sob suspeição de
crimes. A Lava-Jato é o melhor instrumento de que dispomos para regenerar o
Congresso. Eles sabem disso.
Foi dada a última volta do parafuso na degradação da vida
política. A população tem medo do Parlamento que, supostamente, deveria
representá-la. Pergunta-se o que estarão tramando às escondidas políticos que
fazem o país refém no afã de salvar a própria pele. Que riscos corre o Brasil,
quem sabe a sabotagem da política econômica? Quanto mais encurralados se sentem
pelas investigações, mais perigosos se tornam. E pouco se importam com o que
pense a sociedade. E, no entanto, apesar deles e contra eles, a sociedade faz
seu caminho.
Horas antes, à luz do dia, no prédio ao lado, no Supremo
Tribunal Federal, o ministro Luiz Alberto Barroso, com apoio da ministra Rosa
Weber e do ministro Luiz Fachin, decidia que o aborto até o terceiro mês de
gestação não é crime, independentemente do motivo que leve a mulher a
interromper a gravidez. Invocavam “os direitos sexuais e reprodutivos da
mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada:
a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas
existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no
seu corpo e psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade, já que os homens
não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se
respeitar a vontade da mulher nessa matéria”.
Nunca o Judiciário abordara de maneira tão límpida e justa a
questão da interrupção voluntária da gravidez. Jamais dera uma resposta tão
satisfatória às mulheres que, há anos, lutam pelo reconhecimento de seu direito
de escolha.
O contraste entre o atraso de um Congresso carcomido pela
corrupção e a contemporaneidade de um STF que acolhe as demandas da sociedade
põe em evidência o paradoxo atual do Brasil. Não é a sociedade brasileira nem
as suas instituições como um todo que estão em crise. Se a Lava-Jato revela o
lado sombrio do país, sua existência é luz, ato de resistência. Da sociedade
brotaram iniciativas como a Lei da Ficha Limpa, exprimindo a recusa à
corrupção. E antes dela, movimentos de cidadãos — mulheres, negros,
ambientalistas, gays — não esperaram por ninguém para ampliar liberdades e conquistar
direitos.
O Brasil muda a cada dia graças à coragem de juízes e
procuradores, à capacidade de inovação e resiliência de milhões de brasileiros.
Ações cívicas, espontâneas, espalhadas pelo país, impedem que nos deixemos
abater pela depressão, quase vergonha, que nos ameaça. É essa energia que
revitaliza a política, de fora para dentro, da sociedade para o Estado.
“Há um futuro luminoso querendo despertar das sombras do
presente”, conclui o livro “Trópicos utópicos”, de Eduardo Giannetti, que
serviu de inspiração ao Fórum do Amanhã reunido em Tiradentes, pequena cidade
metáfora de um Brasil que preservou sua alma, sua história e arte. Cenário
ideal para nos interrogarmos: “Que constelação de valores seria capaz de nos
unir em torno de um projeto inédito de país?”.
Os anos de 2017 e 2018 serão dedicados a responder a essa
pergunta. É preciso que cidadãos se reúnam Brasil afora, virtualmente ou cara a
cara, criem espaços para pensar e construir nosso amanhã, o país possível e
desejável. Para além dos ódios primários, que surjam nomes para encarnar uma
política renovada por jovens, senhores que são das redes, que representem
dignamente quem neles confiar.
Velhas raposas corruptas estão com medo da Justiça. Não têm
medo de nós, os eleitores, que desprezam e humilham. Porém, enganam-se. Se nos
mobilizarmos para refundar a política, como fizemos ao denunciar a corrupção e
dizer não à impunidade, uma surpresa os espera. Amanhã não será um domingo
qualquer, a multidão voltará às ruas. Há que temer os cidadãos.
O Globo, 03/12/2016
Rosiska Darcy de Oliveira - Sexta ocupante da cadeira 10 da
ABL, eleita em 11 de abril de 2013. É escritora e ensaísta. Sua obra literária
exprime uma trajetória de vida. Foi recebida em 14 de junho de 2013 pelo
Acadêmico Eduardo Portella, na sucessão do Acadêmico Lêdo Ivo, falecido em 23
de dezembro de 2012.
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