Meu São João
Cyro de Mattos
Os preparativos dos comes e bebes começam cedo. O porco
abatido pelo vaqueiro é esfolado com água quente, depois cortado em pedaços que
vão ser assados no forno. As vísceras são aproveitadas para quem gosta de
sarapatel. A carne bovina do churrasco nunca falta. Mulheres descascam espigas
de milho verde, São João sem canjica e licor não rima. A mulher do dono da
fazenda faz como sempre vários tipos de licor para a festa. De leite,
carambola, pitanga, laranja, tangerina, banana, cacau, tamarindo, jabuticaba e
o imbatível jenipapo. O dono da fazenda manda armar uma fogueira grande no
pasto, perto da casa-sede. De uns dois metros, para ser queimada a noite toda,
as fagulhas constantes subindo para o alto. Ele acha que fogueira grande aquece
mais os corações na animação da festa.
Folhas de palmeira
são colocadas nos mourões de cada cancela e nos postes da rede de energia
elétrica. Os filhos do dono da fazenda enfeitam com bandeirolas o alpendre e o
salão de dança. Dessa vez as bandeirolas têm as cores verde e amarela, é dia de
jogo pela Copa do Mundo de Futebol. O Brasil vai enfrentar a Argentina. Se
vencer o jogo, vai dar um grande passo para ir até a partida final e, com a
ajuda dos deuses, poderá se sagrar mais uma vez campeão mundial de futebol. Ao
anoitecer, tudo já está pronto para a festa. A mesa grande arrumada com os
pratos de canjica, bolo de aipim, de batata-doce, de milho verde e fubá; cocada
de cacau, de coco, pamonha, amendoim cozido; doce de leite, arroz-doce, pipoca,
balas de banana e jenipapo com açúcar e outras iguarias para a gente grande e a
meninada.
Dois caldeirões com milho cozido são colocados em cima da
mesinha. Nos cantos da sala, grandes cestas estão cheias com espigas de milho
verde, laranja e tangerina. O aparelho de som vem tocando apenas música de
forró o dia todo. O dono da fazenda faz questão que Luiz Gonzaga seja o mais
tocado na festa. Há anos que o rei do baião fixou morada no coração do menino,
acompanhou o moço através daquela fala ritmada que diz do mundo feito de gente
simples com seus casos de amor, alegria e tristeza. Ressoa no íntimo do homem
idoso uma voz candente, que entoa a sina cumprida pela gente nordestina,
caminhando no esforço dos anos pela amplidão da terra rachada pelo sol. Sem a
voz inconfundível e a sanfona generosa de Luiz Gonzaga, que embala a festa com
o tradicional baião, e ainda xaxado, xote e xamego, o São João não tem graça
para o dono da fazenda.
Faróis acesos de uma
camionete na estrada anunciam que já vêm chegando os primeiros convidados.
Antes de a camioneta passar a última cancela, os convidados são saudados com
foguetes que riscam o céu e estouram na noite fria de inverno. Os compadres
estão acabando de chegar com os filhos, abraços e beijos no alpendre
misturam-se com vivas a São João. Daí a pouco instante vêm chegando em outros
carros parentes, amigos do dono da fazenda e da sua mulher. A noite fica barulhenta,
os mais jovens vão para o salão de dança onde a festa está sendo puxada pelo
som quente do Trio Nordestino.
Lá fora no pasto, a
fogueira está queimando em homenagem ao santo, o forró então começa para valer,
é visível nos rostos que todos estão de bem com a vida. Esta é uma festa que os
trabalhadores também vêm participar com o dono da fazenda e os convidados. A
noite do inverno vira embalo de alma sanfoneira, sonora água ardente e licor
caprichado que se bebe com satisfação. É arrasta-pé da moçada, quadrilha
improvisada, calor de vozes por entre gaiatices e sorrisos. Move-se com
cantiga, requebros de cintura e passos nos corpos suados. A ordem do dono da
fazenda é para ninguém parar de dançar enquanto houver música de forró
escorrendo no salão.
Aquecida no embalo da festa, a noite vai passando acesa de
balão, riscada por foguete que lá no alto pipoca doze tiros nas descargas
estrepitosas. Fere os tímpanos com pipocos de Adrianino, bomba, faz chover ouro
e prata. Desenha flores e lágrimas com fogos de artifício. A noite vai sendo
coberta de fumaça no terreiro, puxando pela cauda a madrugada, que chega em
tons cinzentos sem que ninguém perceba. É quando os convidados começam a deixar
a festa. Há promessa do dono da fazenda de que para o ano vai ter mais, será
ainda melhor, não esqueçam.
Afinal são décadas que essa alegria em homenagem ao santo
vem se repetindo na fazenda São Bernardo, em Ferradas. É a festa que mais o
dono da fazenda gosta. Quando era pequeno, ele vinha de ônibus até a vila de
Ferradas. De lá até a fazenda vinha a pé, trilhando por um acesso estreito,
atravessando roças vizinhas, para participar da festa em homenagem ao santo na
fazenda iluminada a gás de lampião.
Restam agora da fogueira poucos paus que ainda queimam, o
resto é cinza e nada mais. Na casa-sede com janelas e portas fechadas, a mulher
e os filhos estão ferrados no sono. O silêncio da manhã é quebrado de vez em
quando pelo pipoco de alguma bomba que vem lá do vizinho. O dono da fazenda
segue com o rosto de sono na direção do curral para ver a tirada do leite.
Hoje, no dia do santo, o vaqueiro está tirando o leite no curral com as vacas
ouvindo música de São João pelo rádio. O dono da fazenda fica contente com
isso.
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Cyro de Mattos é ficcionista, poeta e ensaísta
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