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sexta-feira, 21 de junho de 2024

Meu São João

 Cyro de Mattos

 


          Os preparativos dos comes e bebes começam cedo. O porco abatido pelo vaqueiro é esfolado com água quente, depois cortado em pedaços que vão ser assados no forno. As vísceras são aproveitadas para quem gosta de sarapatel. A carne bovina do churrasco nunca falta. Mulheres descascam espigas de milho verde, São João sem canjica e licor não rima. A mulher do dono da fazenda faz como sempre vários tipos de licor para a festa. De leite, carambola, pitanga, laranja, tangerina, banana, cacau, tamarindo, jabuticaba e o imbatível jenipapo. O dono da fazenda manda armar uma fogueira grande no pasto, perto da casa-sede. De uns dois metros, para ser queimada a noite toda, as fagulhas constantes subindo para o alto. Ele acha que fogueira grande aquece mais os corações na animação da festa.

           Folhas de palmeira são colocadas nos mourões de cada cancela e nos postes da rede de energia elétrica. Os filhos do dono da fazenda enfeitam com bandeirolas o alpendre e o salão de dança. Dessa vez as bandeirolas têm as cores verde e amarela, é dia de jogo pela Copa do Mundo de Futebol. O Brasil vai enfrentar a Argentina. Se vencer o jogo, vai dar um grande passo para ir até a partida final e, com a ajuda dos deuses, poderá se sagrar mais uma vez campeão mundial de futebol. Ao anoitecer, tudo já está pronto para a festa. A mesa grande arrumada com os pratos de canjica, bolo de aipim, de batata-doce, de milho verde e fubá; cocada de cacau, de coco, pamonha, amendoim cozido; doce de leite, arroz-doce, pipoca, balas de banana e jenipapo com açúcar e outras iguarias para a gente grande e a meninada.

          Dois caldeirões com milho cozido são colocados em cima da mesinha. Nos cantos da sala, grandes cestas estão cheias com espigas de milho verde, laranja e tangerina. O aparelho de som vem tocando apenas música de forró o dia todo. O dono da fazenda faz questão que Luiz Gonzaga seja o mais tocado na festa. Há anos que o rei do baião fixou morada no coração do menino, acompanhou o moço através daquela fala ritmada que diz do mundo feito de gente simples com seus casos de amor, alegria e tristeza. Ressoa no íntimo do homem idoso uma voz candente, que entoa a sina cumprida pela gente nordestina, caminhando no esforço dos anos pela amplidão da terra rachada pelo sol. Sem a voz inconfundível e a sanfona generosa de Luiz Gonzaga, que embala a festa com o tradicional baião, e ainda xaxado, xote e xamego, o São João não tem graça para o dono da fazenda.

         Faróis acesos de uma camionete na estrada anunciam que já vêm chegando os primeiros convidados. Antes de a camioneta passar a última cancela, os convidados são saudados com foguetes que riscam o céu e estouram na noite fria de inverno. Os compadres estão acabando de chegar com os filhos, abraços e beijos no alpendre misturam-se com vivas a São João. Daí a pouco instante vêm chegando em outros carros parentes, amigos do dono da fazenda e da sua mulher. A noite fica barulhenta, os mais jovens vão para o salão de dança onde a festa está sendo puxada pelo som quente do Trio Nordestino.

           Lá fora no pasto, a fogueira está queimando em homenagem ao santo, o forró então começa para valer, é visível nos rostos que todos estão de bem com a vida. Esta é uma festa que os trabalhadores também vêm participar com o dono da fazenda e os convidados. A noite do inverno vira embalo de alma sanfoneira, sonora água ardente e licor caprichado que se bebe com satisfação. É arrasta-pé da moçada, quadrilha improvisada, calor de vozes por entre gaiatices e sorrisos. Move-se com cantiga, requebros de cintura e passos nos corpos suados. A ordem do dono da fazenda é para ninguém parar de dançar enquanto houver música de forró escorrendo no salão.

          Aquecida no embalo da festa, a noite vai passando acesa de balão, riscada por foguete que lá no alto pipoca doze tiros nas descargas estrepitosas. Fere os tímpanos com pipocos de Adrianino, bomba, faz chover ouro e prata. Desenha flores e lágrimas com fogos de artifício. A noite vai sendo coberta de fumaça no terreiro, puxando pela cauda a madrugada, que chega em tons cinzentos sem que ninguém perceba. É quando os convidados começam a deixar a festa. Há promessa do dono da fazenda de que para o ano vai ter mais, será ainda melhor, não esqueçam.

          Afinal são décadas que essa alegria em homenagem ao santo vem se repetindo na fazenda São Bernardo, em Ferradas. É a festa que mais o dono da fazenda gosta. Quando era pequeno, ele vinha de ônibus até a vila de Ferradas. De lá até a fazenda vinha a pé, trilhando por um acesso estreito, atravessando roças vizinhas, para participar da festa em homenagem ao santo na fazenda iluminada a gás de lampião.

          Restam agora da fogueira poucos paus que ainda queimam, o resto é cinza e nada mais. Na casa-sede com janelas e portas fechadas, a mulher e os filhos estão ferrados no sono. O silêncio da manhã é quebrado de vez em quando pelo pipoco de alguma bomba que vem lá do vizinho. O dono da fazenda segue com o rosto de sono na direção do curral para ver a tirada do leite. Hoje, no dia do santo, o vaqueiro está tirando o leite no curral com as vacas ouvindo música de São João pelo rádio. O dono da fazenda fica contente com isso.

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Cyro de Mattos é ficcionista, poeta e ensaísta

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