Tempo de São
João
Cyro de Mattos
Meu pai tinha renda modesta. Havia acabado de adquirir uma
avenida de casas populares, lá no último quarteirão da Rua do Quartel Velho.
Segundo ele, a avenida era constituída de trinta casinhas, cada uma delas possuindo
uma sala, um quarto, cozinha e banheiro. As casinhas estavam alugadas a
sapateiro, lavadeira, mecânico, cozinheira, vendedor ambulante e outras pessoas
de baixa renda na sua profissão.
O dinheiro que meu pai passou a ganhar com as casinhas
alugadas da avenida veio aumentar razoavelmente a sua renda, que provinha
até então do que ele vendia em seu quiosque num dos bairros da cidade: bebida,
cigarro, charuto, manteiga e balas de jenipapo, que minha mãe fazia.
Minha mãe era costureira e bordadeira de mão cheia.
Costurava e bordava enxoval de noiva que fosse filha de família rica. Era
também uma doceira fina. Dava ao meu pai não só o dinheiro que ganhava com os
doces que fazia mas também o que recebia com os enxovais que costurava e
bordava para as noivas. Ajudava assim a meu pai nas despesas diárias que ele
tinha para sustentar a família.
Meu pai chegava lá em casa de cara fechada. Só pensava em
ficar rico. Sofria muito para sustentar a família.
Um dia, escutei ele dizer à minha mãe:
- Ser pobre e a pior desgraça da vida. É comer mal, vestir
mal, dormir mal, não ter casa para morar nem dinheiro para comprar remédio
quando a pessoa fica doente.
- O que é isso, homem de Deus – disse minha mãe. – Temos
vida humilde, mas nunca passamos privações com muita gente nesta vida.
Ora essa! Nada disso que meu pai dizia sobre o pobre
interessava-me. O que me importava mesmo era ter um amigo para brincar, fosse
pobre ou rico, branco ou preto, gordo ou magro.
Estou contando essas coisas agora de meu pai para que saibam
de que não adiantava esperar por ele, achando que naquele ano ia comprar fogos
para eu soltar no São João. Ele estava sempre dizendo que comprar fogos para
soltar no São João era mesmo que queimar dinheiro num abrir e fechar de
olho.
Não queria ficar olhando os outros meninos soltando fogos no
São João, lá em nossa rua ou em qualquer canto da cidade. Por isso mesmo teria
que arranjar uma maneira de ganhar algum dinheiro para comprar os fogos de São
João.
Pensei em vender revistas e jornais velhos aos donos de
armazém na Rua da Lama. Sabia que jornal velho servia para enrolar certas
coisas que os donos de armazém vendiam. Tinha observado um dia seu Júlio
Sergipano enrolando sabão no balcão do armazém com uma folha de jornal velho.
Pensei também em vender garrafas ao dono de uma pequena fábrica de vinagre
perto da nossa casa.
Ia de casa em casa, procurando por revistas e jornais
velhos, garrafas grandes e pequenas. Dona Creusa, a mulher de Seu Miranda, o
funcionário do banco, era quem mais me dava revistas e jornais velhos.
Dona Jô, a esposa do dono da casa de ferragens, uma mulher gorda, de pernas
arqueadas, era quem mais tinha garrafas arrumadas em caixotes. Às vezes
chegava a encher um saco grande com tanta garrafa que ela me dava.
Com o dinheiro que ganhava, vendendo garrafa, revistas e
jornais velhos, ia comprando os fogos para soltar no São João. Guardava-os numa
caixa de sapato, que escondia debaixo da cama para que meu pai não os
descobrisse. Se ele descobrisse que eu estava comprando fogos para soltar
no São João, certamente ia argumentar zangado: “Do menino se faz o homem, tenha
juízo. Guarde seu dinheiro para usar com as coisas sérias e não para queimá-lo
com fogos no São João. É uma grande besteira o que você quer fazer, muitas
vezes já lhe disse isso”.
Esperava meu pai dormir no quarto ao lado e, quando percebia
que ele estava ferrado no sono, apanhava debaixo da cama a caixa de sapato com
os fogos que vinha juntando para soltar no São João. Ficava examinando
pacientemente os fogos que tinha comprado com dificuldade. Passava e
repassava-os diante de meus olhos deslumbrados, mesmo sabendo que ainda eram
poucos: chuva de prata, chuva de ouro, cobrinha, estrelinha, fósforo de cor,
traques de menino e vulcão.
Os dias demoravam de passar até chegar o mês de São João,
embora desejasse que voassem o mais rápido possível. De vez em quando ia olhar
na folhinha quantos dias faltavam para chegar o São João. Fazia as contas e via
que faltavam quase três meses para a chegada da festa do santo que tinha um
carneirinho, como uma vez tinha visto a imagem num quadro emoldurado, pendurado
na parede da Vidraçaria Santo Antonio, numa das esquinas da rua do
comércio.
Quando percebi no mês de maio que não estava mais
conseguindo garrafas para vender, nem revistas e jornais velhos, eu tive então
aquela ideia de vender minhas revistas em quadrinhos, além dos dois álbuns de
figurinhas, um com os jogadores de futebol dos times do Rio e o outro com os
artistas do cinema americano.
Não seria difícil vender meus álbuns de figurinhas entre os
meninos lá da rua. Tanto o álbum de jogadores de futebol como o de artistas de
cinema eram cobiçados por muitos meninos da cidade. Ambos estavam
completos,
tinha conseguido preenchê-los com todas as figurinhas
de jogador de futebol ou de artista americano. Mas as revistas em quadrinhos?
Tinha minhas dúvidas se ia conseguir vender algumas delas, qualquer menino lá
da rua já havia lido todas elas.
Depois de resistir uns dias, vendi os dois álbuns de
figurinhas ao filho do juiz por um bom preço. E, sem esperança, fui vender
depois minhas revistas em quadrinhos no passeio do Cine Itabuna. Para a minha
satisfação, vendi todas elas nos quatro domingos do mês de maio. Espalhados no
passeio do cinema, sempre vendia meus gibis e guris velhos aos outros meninos
antes de começar a primeira sessão da matinê.
Tive então um susto esplêndido quando chegou o mês de junho
e percebi que possuía agora seis caixas de sapato cheias de fogos, podendo
naquele ano de inverno frio soltá-los não só nos dias de São João mas também no
São Pedro.
Enquanto fui menino nunca deixei de soltar fogos nas festas
de São João e São Pedro. Sempre dava um jeito para arranjar o dinheiro para
comprar os fogos. Soltava-os e queria soltar mais. Nunca estava satisfeito. Lá
pras nove horas da noite, lembrava de ir com a turma de amigos soltar
balõezinhos na beira do rio. Era uma sensação de vitória fascinante no exato
momento em que acendíamos o balão e víamos o vento levá-lo vagaroso
acima do rio. Tínhamos certeza que os balõezinhos que subiam, às vezes
oscilando, conquistavam as estrelas e a lua, lá no alto do céu.
Ah, aquelas noites de junho, o coração tanto queria.
Crepitavam dentro de mim antes que chegassem com as fogueiras acesas nas ruas.
Pipocavam com bombas e foguetes. Esbanjavam-se com licor e canjica.
CYRO DE MATTOS é escritor e poeta. Editado no exterior. Membro da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz -Uesc.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário