Solidão em Gabriel García Márquez
Cyro de Mattos
A decadência do romance regionalista na literatura da
América Latina, por volta de 1940, fez com que surgissem novos autores
interessados pela temática universal, buscando operar o conto e o romance não mais com os elementos supervalorizados
da terra. A selva, o rio, o lhano e a zona andina não interessam mais com a sua
grandeza e particularidades. Vale nesse tempo de sonho e desafio a imagem do
homem contemporâneo com os vícios e virtudes de sua natureza pessoal. Recorre-se então a Kafka, Joyce, Faulkner,
Proust e Virgínia Woolf como influências positivas para a consciência crítica
de novas técnicas no nível da história e no plano da elaboração formal.
Uma literatura
questionadora da essência humana vai surgindo para ocupar o lugar da geografia
caracterizada pela paisagem física, que subjuga os valores do indivíduo. O homem e seus aspectos essenciais, sua luta
de transcender e de afirmação do seu caráter servem de motivação agora para as
criações de contistas e romancistas. E o
que se percebe nessa mudança de atitude é o compromisso do escritor como
testemunha do seu tempo, sem implicações de submissão do seu processo criativo
à estética do regionalismo limitado, nem tampouco ao nível panfletário do
conteúdo político.
As interrogações e angústias desse homem contemporâneo são
reveladas com novas técnicas, como vínculo de gravidade do cotidiano. A modelação do espaço e tempo, a
experimentação de nova linguagem, o uso
do mito, do onírico, do simbolismo e do monólogo interior são os meios
empregados na narrativa interpelativa para mergulhar o leitor no mundo em
processo, agora escavado em suas faixas metafísicas e de teor existencial. José
Maria Arguedas, Alejo Carpentier, Julio Cortázar e José Revueltas são alguns
desses nomes que se inscrevem na nova corrente de renovação da prosa de ficção
hispano-americana.
Gabriel García Márquez tinha uma relativa notoriedade até
1961como escritor nos círculos intelectuais do México onde vivia e atuava como
roteirista de cinema. Já havia escrito quatro livros, que obtiveram resenhas favoráveis, mas que não lhe deram a
fama de escritor maior de todos os tempos, como iria acontecer com Cem anos de
solidão, publicado em 1967. Esse magnífico romance, que é como a assinatura
especial do legado do autor colombiano, é considerado por alguns críticos o
segundo mais importante da literatura mundial, sendo o primeiro Dom Quixote de
La Mancha, de Miguel de Cervantes. Tornou-se em pouco tempo o mais importante
do realismo mágico na literatura hispano-americana. O livro já vendeu mais de
cinquenta milhões de exemplares, foi traduzido e publicado em mais de 32
idiomas, deu ao seu autor o Prêmio Nobel.
Livro arrebatador, passivo de várias interpretações, quanto
mais as suas páginas são lidas, a vontade quer, o coração sente e não cansa.
Pode até a sua leitura ser dificultada e se tornar confusa com os nomes na
história da família do coronel Aureliano Buendía, repetidos uma e outra
vez. Há quatro José Arcadio Buendía e
três Aureliano Buendía nos cem anos em que decorre a história. Esse comportamento na escrita fluente faz
parte da estratégia para a construção da estrutura do romance. Mas nem essa
particularidade, que pode confundir o leitor, tira do romance o seu poder
mágico, a sedução do estilo no cronista que mescla a oralidade da linguagem com
o imaginário fabuloso expresso com profundidade metafórica e largura intensa na
ideia. Tanto isso é verdadeiro, faz sentir
sem esforço a realidade e a fantasia, que unidas aparentam ser uma coisa
só como representação do mundo.
Para não usar o
espaço tradicional, com a localização das cenas em determinado lugar do tempo
histórico, evitar a narrativa linear operada através de acontecimentos
extraordinários, com os momentos lineares de princípio, meio e fim, Gabriel
García Márquez emprega o tempo circular no desenvolvimento da trama. Superpõe e
justapõe situações com personagens do mesmo nome em gerações diferentes, como
se girassem movidos pelo eixo da existência numa mesma órbita.
Em certo trecho, lemos essa passagem sobre o círculo do
tempo, no seu eterno retorno:
José Arcádio Segundo,
ao reconhecer a voz de sua bisavó, vira a cabeça para a porta, tratou de sorrir
e, sem saber, repetiu uma antiga frase de Úrsula.
- Que se há de fazer – murmurou – o tempo passa.
- É
verdade – disse Úrsula – mas não tanto.
Ao dizê-lo, teve consciência de estar dando a mesma resposta
que recebera do Coronel Aureliano Buendía na sua cela de sentenciado e mais uma
vez estremeceu com a comprovação de que o tempo não passava, como ela acabava
de admitir, mas girava em círculo.
A estrutura do
livro, portanto, é circular, desde o começo da fundação de Macondo, um povoado
fictício, até a sua apocalíptica destruição. Na trama que nos envolve a cada
instante, os elementos da vida constante vão sendo expostos misturados com os
sonhos, ocorrendo com habilidade a fusão das circunstâncias entre o pensamento
mágico e o pensamento lógico. E dessa forma de combinação entre magia e
informes lógicos, ilusões e raciocínios objetivos, o admirável narrador e não
menos admirável ficcionista vai conseguindo extrair uma sobrecarga espantosa de
emoções e acontecimentos inusitados na história dos Buendías. Com poesia e
ritmo arrebatador, a narrativa gira do seu eixo vibratório entrelaçada por
entre as zonas do mito, realidade e fábula.
Para os críticos que
ressaltam Cem anos de solidão como o romance que expressa a condição humana, o
seu discurso é apreendido como o da história de todos os homens, com os seus
sonhos, suas perdas, suas frustrações, suas lutas e seus lutos. Nesse discurso
marcado de fatalidades e paixões conota-se o
clima de sonho misturando seres e coisas com tudo que se encontrasse na
vida: “... as mulheres de rua, que arruinavam o sangue; as mulheres de casa,
que pariam os filhos com rabo de porco;
os galos de briga, que provocavam mortes de homens e remorsos de
consciência para o resto da vida; as armas de fogo, que só com serem tocadas
condenavam a vinte anos de guerra; as empresas audaciosas, que só conduziam ao desencontro e à loucura, e tudo, enfim, tudo que Deus criara com a sua infinita bondade e que o diabo
pervertera” (p. 324).
O casal José
Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, que fundou Macondo com suas trinta casas no
início, ruas iluminadas e ventiladas, teve três filhos: José Arcadio, que era
um rapaz disposto e trabalhador; Aureliano, que contrasta com o irmão mais
velho, via-se que era filosófico, sereno e muito introspectivo; e por último
Amaranta, a típica dona de casa de uma família de classe média do século
dezenove. Soma-se a estas personalidades
Rebeca, que foi enviada da antiga aldeia de José Arcadio e Úrsula, sem
pai nem mãe. A história com a sua mitologia doméstica é ritmada como os sons das cordas e sopros dos
metais, à volta desta geração e dos seus descendentes, filhos, netos, bisnetos
e trinetos, tendo como característica o fato de que todas as gerações foram
acompanhadas por Úrsula, que viveu entre 115 e 122 anos, morrendo de velhice e
cega.
Atacada
pela catarata, cega nos derradeiros anos de vida, mas ainda identificando nos
detalhes e movimentos pessoas e coisas íntimas, graças à sua apurada visão
imaginativa, esta centenária personagem dará conta de que as características
físicas e psicológicas dos seus herdeiros estão associadas a um nome, sendo os
José Arcadio de natureza impulsiva, extrovertidos e trabalhadores, enquanto os
Aurelianos são pacatos, estudiosos e muito fechados no seu próprio mundo
interior. Os Aurelianos terão ao longo do livro a missão desafiadora de
desvendar os misteriosos pergaminhos de Melquíades, o Cigano, personagem guardador
de um mundo singular, que foi amigo de José Arcadio Buendía. Os pergaminhos
guardam o segredo da história dramática da família e apenas serão decifrados
quando o último da estirpe estiver às portas da morte.
O tema da
violência, que deforma o comportamento
humano, do incesto em que os filhos do casal do mesmo sangue nascem com o rabo de porco, a história da
solidão, que não é apenas a do coronel Aureliano Buendía, mas a de toda a sua família, desde a fundação de
Macondo, quando não se sabia os nomes
das coisas, não se conhecia uma
dentadura postiça e o gelo, e até
que o último Buendía se suicida, cem anos depois, todos esses momentos dentro
de um processo em que se alternam certos acontecimentos históricos, com guerras
e revoluções civis, o amor em tempo instável de paixões e frustrações, formam o painel humano e
fantástico contendo o percurso de todos os seres humanos no mundo. Expande-se uma humanidade
fantástica na circularidade dos instantes em que marcas dramáticas e, ao mesmo
tempo, cheias de um realismo mágico são expressões de um ritmo obsessivo, de
grandeza insólita na escrita com extraordinária poetização da vida.
Filiado à corrente do realismo
mágico, expressão que não agradava ao autor de Cem anos de solidão, que achava
como eventos naturais aqueles que aconteciam na aparência irreal, em Macondo, o
romance está impregnado de momentos inusitados do cotidiano. A peste da insônia que deixa os moradores de
Macondo sem memória, desligados do mundo,
submissos à inércia repetitiva e
enfadonha dos fatos e atos; as borboletas que acompanham Maurício Babilônia, a
ascensão de Remédios, a Bela, levada pelos lençóis ao céu; as crianças
nascidas com o rabo de porco como
fruto de incesto; a caixa com cartas dos
parentes e amigos levada para os
mortos, colocada dentro do caixão do falecido; os mortos que
apareciam e conversavam com os vivos; todas estas situações são encaixadas nas
cenas como se resultassem de uma lógica
racional, que comanda o tempo cronológico dos habitantes de Macondo. A
realidade, assim, não é trabalhada para que, desfeita, se instaure o mágico,
visto que este faz parte das manifestações da vida no cotidiano.
Da leitura
desse soberbo romance constata-se que Macondo tornou-se em pouco tempo um território
incorporado definitivamente ao mapa da literatura ocidental, alcançou um espaço
inserido no contexto político-histórico da América Latina. Além disso, foi transformado em uma espécie
de sinônimo do realismo mágico, representativo, mesmo que idilicamente, do
desejo de unidade da América Latina.
O livro deixa que seu espaço, por onde circulam personagens
e ações, seja visto como referencial relativo ao Caribe, à Colômbia e por
consequência à América Latina. Pode ser visto como uma espécie de metáfora da
situação latino-americana, entrelaçada com a história da Colômbia, suas guerras
civis e militares, traições, lutas pelo poder, entre liberais e conservadores,
atos absurdos como o massacre de três mil trabalhadores, acuados e fuzilados
pelo Exército, que manda levar os corpos em vagões de trem para que fossem
jogados no mar.
. Outros
críticos pensam Cem anos de solidão dentro do cruzamento entre história e mito,
e, nessa interpretação metafórica, o romance deve ser visto como criação e
síntese do mundo. Trata-se de uma metáfora da condição humana revelada através
dos membros da família Buendía. No entanto, entre os que interpretam como uma
grande metáfora da condição humana e aqueles que concebem a invenção ímpar do
romancista colombiano como uma chave de acesso ao contexto histórico do
continente, não se pode deixar de considerar que esse livro tem o tamanho
eterno do homem, com todo o seu medo de sombras, que o acompanham no mundo e
não se explicam desde não sei quando. Para que sobrevivam sempre, basta que o
coração as aceite como camadas noturnas do ser.
. Na circularidade do tempo, no fatal
determinismo que comanda com rigor a
vida dos Buendía, no tamanho soberbo da solidão que pesa sobre seus personagens
principais e secundários, na impotência ante as forças indomáveis da natureza e
dos instintos humanos, na obra vista
como a denúncia dos problemas
sociopolíticos locais, na matança dos trabalhadores, na violência imposta pelo
poder, no roubo de terras e na opressão ostensiva sobre os excluídos e fracos,
esse romance de expressão imensa construído sob o ritmo de uma orquestração
extraordinária possui suficiente
autonomia como se fosse uma ficção-poema
de intensa carga lírica. Plasmada de
simbolismos, a palavra aqui, tomada emprestada ao sonho para revelar as
verdades e ilusões do cotidiano, poreja de magia e música surpreendentes, que
alcançam os melhores níveis da criação literária com repercussão universal.
Gabriel
García Márquez ficou mergulhado em dezoito meses de trabalho para escrever Cem
anos de solidão, enfrentando toda espécie de privação face o esgotamento das
reservas econômicas. Já não tinha as mínimas condições para suprir as
necessidades domésticas imediatas no final da conclusão do romance. Recorria à venda das joias restantes da
esposa Mercedes e aos objetos da casa.
Nascido em
Arataca, Colômbia, em 6 de março de 1927, Gabriel García Márquez foi
jornalista, editor e ativista político colombiano. Faleceu no dia 17 de abril
de 2014, aos 87 anos, na cidade do México. Em pleno brilho do ouro da glória.
Leituras Sugeridas
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão, Editora
Record, Rio de Janeiro, trigésima edição.
JOSEF, Bela. História da literatura hispano-americana,
Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1971.
CERQUEIRA, Dorine. America América: amostragem da ficção
hispano atual, Editus, editora da Uesc, Ilhéus, Bahia, 2011.
*O texto “Solidão em Gabriel García Márquez” integra o livro
Kafka, Faulkner e Borges e outras solidões imaginadas, da EDUEM, editora da
Universidade Estadual de Maringá, Paraná.
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