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quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Solidão em Gabriel García Márquez       

Cyro de Mattos


 

          A decadência do romance regionalista na literatura da América Latina, por volta de 1940, fez com que surgissem novos autores interessados pela temática universal, buscando operar o conto e o romance   não mais com os elementos supervalorizados da terra. A selva, o rio, o lhano e a zona andina não interessam mais com a sua grandeza e particularidades. Vale nesse tempo de sonho e desafio a imagem do homem contemporâneo com os vícios e virtudes de sua natureza pessoal.  Recorre-se então a Kafka, Joyce, Faulkner, Proust e Virgínia Woolf como influências positivas para a consciência crítica de novas técnicas no nível da história e no plano da elaboração formal.

           Uma literatura questionadora da essência humana vai surgindo para ocupar o lugar da geografia caracterizada pela paisagem física, que subjuga os valores do indivíduo.  O homem e seus aspectos essenciais, sua luta de transcender e de afirmação do seu caráter servem de motivação agora para as criações de contistas e romancistas.  E o que se percebe nessa mudança de atitude é o compromisso do escritor como testemunha do seu tempo, sem implicações de submissão do seu processo criativo à estética do regionalismo limitado, nem tampouco ao nível panfletário do conteúdo político.

          As interrogações e angústias desse homem contemporâneo são reveladas com novas técnicas, como vínculo de gravidade do   cotidiano. A modelação do espaço e tempo, a experimentação de nova   linguagem, o uso do mito, do onírico, do simbolismo e do monólogo interior são os meios empregados na narrativa interpelativa para mergulhar o leitor no mundo em processo, agora escavado em suas faixas metafísicas e de teor existencial. José Maria Arguedas, Alejo Carpentier, Julio Cortázar e José Revueltas são alguns desses nomes que se inscrevem na nova corrente de renovação da prosa de ficção hispano-americana. 

          Gabriel García Márquez tinha uma relativa notoriedade até 1961como escritor nos círculos intelectuais do México onde vivia e atuava como roteirista de cinema. Já havia escrito quatro livros, que obtiveram   resenhas favoráveis, mas que não lhe deram a fama de escritor maior de todos os tempos, como iria acontecer com Cem anos de solidão, publicado em 1967. Esse magnífico romance, que é como a assinatura especial do legado do autor colombiano, é considerado por alguns críticos o segundo mais importante da literatura mundial, sendo o primeiro Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. Tornou-se em pouco tempo o mais importante do realismo mágico na literatura hispano-americana. O livro já vendeu mais de cinquenta milhões de exemplares, foi traduzido e publicado em mais de 32 idiomas, deu ao seu autor o Prêmio Nobel.

          Livro arrebatador, passivo de várias interpretações, quanto mais as suas páginas são lidas, a vontade quer, o coração sente e não cansa. Pode até a sua leitura ser dificultada e se tornar confusa com os nomes na história da família do coronel Aureliano Buendía, repetidos uma e outra vez.  Há quatro José Arcadio Buendía e três Aureliano Buendía nos cem anos em que decorre a história.  Esse comportamento na escrita fluente faz parte da estratégia para a construção da estrutura do romance. Mas nem essa particularidade, que pode confundir o leitor, tira do romance o seu poder mágico, a sedução do estilo no cronista que mescla a oralidade da linguagem com o imaginário fabuloso expresso com profundidade metafórica e largura intensa na ideia. Tanto isso é verdadeiro, faz sentir   sem esforço a realidade e a fantasia, que unidas aparentam ser uma coisa só como representação do mundo. 

           Para não usar o espaço tradicional, com a localização das cenas em determinado lugar do tempo histórico, evitar a narrativa linear operada através de acontecimentos extraordinários, com os momentos lineares de princípio, meio e fim, Gabriel García Márquez emprega o tempo circular no desenvolvimento da trama. Superpõe e justapõe situações com personagens do mesmo nome em gerações diferentes, como se girassem movidos pelo eixo da existência numa mesma órbita.

          Em certo trecho, lemos essa passagem sobre o círculo do tempo, no seu eterno retorno: 

 

 José Arcádio Segundo, ao reconhecer a voz de sua bisavó, vira a cabeça para a porta, tratou de sorrir e, sem saber, repetiu uma antiga frase de Úrsula.

- Que se há de fazer – murmurou – o tempo passa.

                   - É verdade – disse Úrsula – mas não tanto.

Ao dizê-lo, teve consciência de estar dando a mesma resposta que recebera do Coronel Aureliano Buendía na sua cela de sentenciado e mais uma vez estremeceu com a comprovação de que o tempo não passava, como ela acabava de admitir, mas girava em círculo.

 

             A estrutura do livro, portanto, é circular, desde o começo da fundação de Macondo, um povoado fictício, até a sua apocalíptica destruição. Na trama que nos envolve a cada instante, os elementos da vida constante vão sendo expostos misturados com os sonhos, ocorrendo com habilidade a fusão das circunstâncias entre o pensamento mágico e o pensamento lógico. E dessa forma de combinação entre magia e informes lógicos, ilusões e raciocínios objetivos, o admirável narrador e não menos admirável ficcionista vai conseguindo extrair uma sobrecarga espantosa de emoções e acontecimentos inusitados na história dos Buendías. Com poesia e ritmo arrebatador, a narrativa gira do seu eixo vibratório entrelaçada por entre as zonas do mito, realidade e fábula.

           Para os críticos que ressaltam Cem anos de solidão como o romance que expressa a condição humana, o seu discurso é apreendido como o da história de todos os homens, com os seus sonhos, suas perdas, suas frustrações, suas lutas e seus lutos. Nesse discurso marcado de fatalidades e paixões conota-se o  clima de sonho  misturando  seres e coisas com tudo que se encontrasse na vida: “... as mulheres de rua, que arruinavam o sangue; as mulheres de casa, que pariam os filhos com rabo de porco;  os galos de briga, que provocavam mortes de homens e remorsos de consciência para o resto da vida; as armas de fogo, que só com serem tocadas condenavam a vinte anos de guerra; as empresas audaciosas, que só  conduziam ao desencontro e à loucura,  e tudo, enfim, tudo que Deus criara  com a sua infinita bondade e que o diabo pervertera” (p. 324).

          O casal José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, que fundou Macondo com suas trinta casas no início, ruas iluminadas e ventiladas, teve três filhos: José Arcadio, que era um rapaz disposto e trabalhador; Aureliano, que contrasta com o irmão mais velho, via-se que era filosófico, sereno e muito introspectivo; e por último Amaranta, a típica dona de casa de uma família de classe média do século dezenove. Soma-se a estas personalidades   Rebeca, que foi enviada da antiga aldeia de José Arcadio e Úrsula, sem pai nem mãe. A história com a sua mitologia doméstica é   ritmada como os sons das cordas e sopros dos metais, à volta desta geração e dos seus descendentes, filhos, netos, bisnetos e trinetos, tendo como característica o fato de que todas as gerações foram acompanhadas por Úrsula, que viveu entre 115 e 122 anos, morrendo de velhice e cega.

            Atacada pela catarata, cega nos derradeiros anos de vida, mas ainda identificando nos detalhes e movimentos pessoas e coisas íntimas, graças à sua apurada visão imaginativa, esta centenária personagem dará conta de que as características físicas e psicológicas dos seus herdeiros estão associadas a um nome, sendo os José Arcadio de natureza impulsiva, extrovertidos e trabalhadores, enquanto os Aurelianos são pacatos, estudiosos e muito fechados no seu próprio mundo interior. Os Aurelianos terão ao longo do livro a missão desafiadora de desvendar os misteriosos pergaminhos de Melquíades, o Cigano, personagem guardador de um mundo singular, que foi amigo de José Arcadio Buendía. Os pergaminhos guardam o segredo da história dramática da família e apenas serão decifrados quando o último da estirpe estiver às portas da morte.

           O tema da violência,  que deforma o comportamento humano, do incesto em que os filhos do casal do mesmo sangue  nascem com o rabo de porco, a história da solidão, que não é  apenas a do coronel  Aureliano Buendía, mas a  de toda a sua família, desde a fundação de Macondo, quando  não se sabia os nomes das coisas, não se conhecia  uma dentadura postiça e  o gelo,  e  até que o último Buendía se suicida, cem anos depois, todos esses momentos dentro de um processo em que se alternam certos acontecimentos históricos, com guerras e revoluções civis, o amor em tempo instável de paixões e frustrações,  formam o painel  humano e  fantástico contendo o percurso de todos os seres humanos  no mundo. Expande-se uma humanidade fantástica na circularidade dos instantes em que marcas dramáticas e, ao mesmo tempo, cheias de um realismo mágico são expressões de um ritmo obsessivo, de grandeza insólita na escrita com extraordinária poetização da vida.  

                Filiado à corrente do realismo mágico, expressão que não agradava ao autor de Cem anos de solidão, que achava como eventos naturais aqueles que aconteciam na aparência irreal, em Macondo, o romance está impregnado de momentos inusitados do cotidiano.  A peste da insônia que deixa os moradores de Macondo sem memória, desligados do mundo,  submissos à  inércia repetitiva e enfadonha dos fatos e atos; as borboletas que acompanham Maurício Babilônia, a ascensão de Remédios, a Bela, levada pelos lençóis ao céu;  as crianças  nascidas com o  rabo de porco como fruto de incesto;  a caixa com cartas dos parentes e amigos levada  para os mortos,  colocada  dentro do caixão do falecido; os mortos que apareciam e conversavam com os vivos; todas estas situações são encaixadas nas cenas  como se resultassem de uma lógica racional, que comanda o tempo cronológico dos habitantes de Macondo. A realidade, assim, não é trabalhada para que, desfeita, se instaure o mágico, visto que este faz parte das manifestações da vida no cotidiano.

        Da leitura desse soberbo romance constata-se que Macondo tornou-se em pouco tempo um território incorporado definitivamente ao mapa da literatura ocidental, alcançou um espaço inserido no contexto político-histórico da América Latina.  Além disso, foi transformado em uma espécie de sinônimo do realismo mágico, representativo, mesmo que idilicamente, do desejo de unidade da América Latina.

        O livro deixa que seu espaço, por onde circulam personagens e ações, seja visto como referencial relativo ao Caribe, à Colômbia e por consequência à América Latina. Pode ser visto como uma espécie de metáfora da situação latino-americana, entrelaçada com a história da Colômbia, suas guerras civis e militares, traições, lutas pelo poder, entre liberais e conservadores, atos absurdos como o massacre de três mil trabalhadores, acuados e fuzilados pelo Exército, que manda levar os corpos em vagões de trem para que fossem jogados no mar. 

.        Outros críticos pensam Cem anos de solidão dentro do cruzamento entre história e mito, e, nessa interpretação metafórica, o romance deve ser visto como criação e síntese do mundo. Trata-se de uma metáfora da condição humana revelada através dos membros da família Buendía. No entanto, entre os que interpretam como uma grande metáfora da condição humana e aqueles que concebem a invenção ímpar do romancista colombiano como uma chave de acesso ao contexto histórico do continente, não se pode deixar de considerar que esse livro tem o tamanho eterno do homem, com todo o seu medo de sombras, que o acompanham no mundo e não se explicam desde não sei quando. Para que sobrevivam sempre, basta que o coração as aceite como camadas noturnas do ser. 

    .     Na circularidade do tempo, no fatal determinismo que comanda com rigor  a vida dos Buendía, no tamanho soberbo da solidão que pesa sobre seus personagens principais e secundários, na impotência ante as forças indomáveis da natureza e dos instintos humanos,  na obra vista como  a denúncia dos problemas sociopolíticos locais, na matança dos trabalhadores, na violência imposta pelo poder, no roubo de terras e na opressão ostensiva sobre os excluídos e fracos, esse romance de expressão imensa construído sob o ritmo de uma orquestração extraordinária possui  suficiente autonomia  como se fosse uma ficção-poema de intensa carga lírica.  Plasmada de simbolismos, a palavra aqui, tomada emprestada ao sonho para revelar as verdades e ilusões do cotidiano, poreja de magia e música surpreendentes, que alcançam os melhores níveis da criação literária com repercussão universal.

             Gabriel García Márquez ficou mergulhado em dezoito meses de trabalho para escrever Cem anos de solidão, enfrentando toda espécie de privação face o esgotamento das reservas econômicas. Já não tinha as mínimas condições para suprir as necessidades domésticas imediatas no final da conclusão do romance.  Recorria à venda das joias restantes da esposa Mercedes e aos objetos da casa.

           Nascido em Arataca, Colômbia, em 6 de março de 1927, Gabriel García Márquez foi jornalista, editor e ativista político colombiano. Faleceu no dia 17 de abril de 2014, aos 87 anos, na cidade do México. Em pleno brilho do ouro da glória.

 

 Leituras Sugeridas

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão, Editora Record, Rio de Janeiro, trigésima edição.

JOSEF, Bela. História da literatura hispano-americana, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1971.

CERQUEIRA, Dorine. America América: amostragem da ficção hispano atual, Editus, editora da Uesc, Ilhéus, Bahia, 2011.

 

*O texto “Solidão em Gabriel García Márquez” integra o livro Kafka, Faulkner e Borges e outras solidões imaginadas, da EDUEM, editora da Universidade Estadual de Maringá, Paraná.

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