Lugar e Circunstância do Escritor
Cyro de Mattos
Ser escritor é profissão ou apenas uma atividade dos que
exercem a arte literária? Thomas Mann
afirma que não é profissão alguma, e, sim, uma maldição. Começa terrivelmente,
muito cedo. O criador de A Montanha Mágica (Editora Globo, 1953) quis
dizer com isso que o autor ao ser impelido pela força do destino para se
manifestar sobre a vida carrega todo o peso terrestre dentro de si, suportando
assim inúmeras situações conflitantes do existir nos ermos de seu calvário.
Quando faz a leitura crítica do mundo, toma de empréstimo ao sonho a palavra
com a sua natureza mítica. De onde vêm, para onde vão nessas antenas da raça
tantos sentimentos e tendenciosas explicações?
Há quem afirme que a
literatura ajuda a viver o sofrimento que todos nós temos na vida. Carlos
Drummond de Andrade acha que ela ajuda esse sofrimento ser um jogo divertido. O
trivial lírico de Itabira afirmou que é escritor porque escreve. Ele nunca quis
ser membro da Academia Brasileira de Letras, apesar das insistências, mas nunca
abdicou da sua função de escritor, de alguém simples que gostava de falar como
pássaro do cotidiano nos eventos da vida. Nunca lhe agradou essa maneira solene
de ser diferente, não dava sentido à nossa incompletude, que gera incertezas e
dramas diante das questões profundas.
Não é exagero achar que a literatura é uma profissão. É
condição, ato ou efeito de professar, perseguir, proferir crenças e valores.
Declarar publicamente ao outro o que somos no mundo. Nela confessamos nossa
opinião sobre seres e coisas porque assim é nosso modo de ser-estar na
existência. Profissão que não dá rendimentos para sobreviver, não devia ser
assim, dado que é forma de conhecimento da vida, transmite ensinamentos
fundamentais como o amanhecer. Exige esforço e labor. Sacrifício, doação.
Não se vive de literatura, mas para a literatura, dentro
dessa condição em que o autor procura liberar desejos e medos das zonas da
razão e emoção. Essa é minha crença, tem sido minha paixão. A literatura vem
demonstrando que gosta de mim, nesse meu jeito de respirar no trânsito da vida,
assumir as afirmações e suportar as negações. É minha maneira de me sentir útil
na vida quando simulo a realidade através da metamorfose da palavra e levo
minha experiência do mundo aos outros.
A literatura organiza
meus conflitos, oferta-me sonhos, equilibra-me no difícil gesto de viver, que,
segundo Guimarães Rosa, é muito perigoso.
Nesse espaço vital da criação literária é que me encontro com as
mentiras de verdade fornecidas na solidão solidária, deixo de ser um cadáver
ambulante que procria. Convenço-me de que sou apenas esse pobre homem,
contraditório, finito, provisório, andante e errante com suas ingenuidades e
dramas, nesse momento intervalar entre o primeiro vagido e o último suspiro.
Sem fazer a prosa de ficção ou o poema não sou um ente que pensa e tem emoção.
Não tenho motivações para fazer leituras do mundo com as vestes da vida e da
morte. Não consigo retirar dos dias personagens que se queimam com suas
dúvidas, choram às escondidas, revelam suas incandescentes ternuras na parte
noturna do ser.
A
certa altura da entrevista que dava para alguns jornalistas, o romancista
William Faulkner comentou sobre a alegria que tinha no ato de escrever. Ele
disse: “Porém criar! Qual dentre vós, não tendo em si este fogo, pode conhecer
esta alegria, por mais fugaz que ela seja?” Para o autor de O Som e a Fúria
(Editora Portugália, Lisboa, 1969), o legítimo escritor é capaz de saber o que
é esse fogo fugaz da ilusão. Sem essa alquimia do verbo no romance ou no conto
não há o beijo, a lágrima, o riso, o epitáfio, a busca do sentido da tragédia
que somos no mundo como seres imperfeitos.
É com esse fogo da ilusão, a que se referiu William
Faulkner, que aceno para as coisas da vida que se foi, justamente me aconteço
nesses versos do poema “A Roda do Tempo”:
Criei vaga-lumes
Para
vê-los à noite
Brilhando no
quarto.
Nadei como um
peixe ágil
Nas águas mais
claras
Do Rio de Água
Doce.
Como um pássaro
Tive cada voo
Com o vento mais alto.
Andei como bicho solto
Sem ter medo de nada
Pelas ruas do mato.
Mas a infância tem o sabor
De uma fruta doce que termina
Quando vem a idade dos homens. Não é fácil caminhar nessa estrada das letras, a essa altura comprida. Há os que dizem que o escritor tem fome de fama quando escreve, quer permanecer para sempre nos outros com os seus sentimentos e com isso alcançar a imortalidade. São argumentos pueris de quem não tem humildade para reconhecer a obra valorosa que o autor conseguiu durante décadas. Não sabe que o autor legítimo no ato de exercer a palavra escrita tenta encontrar-se por entre os rumores de navegações agudas. Não sabe de solidões pessoais e imaginadas na madrugada de um homem entre alegre e triste.
Jorge Luís Borges
declara que escreve para viver. Gabriel
Garcia Márquez afirma que morre se não escrever, mas também morre se escrever.
Escreve-se porque assim devia ser. Fica claro que escrevo não com sede de
imortalidade. E que sei do meu tamanho e do lugar que ocupo no meio dos
outros. No fundo de tudo, bom não
esquecer, nós somos iguais, entre nascer, viver e morrer. Cada um está aqui
para contar a sua história. Como o vento, não ficamos, para isso fomos feitos,
sonhamos e passamos.
Nada se pode fazer diante do inexorável fixado pelo tempo,
esse senhor categórico, que tudo dá e toma, não muda, nós é que mudamos. Ai de mim, ai de mim. Então lembro, no
instante em que termino esse texto sobre o fazer literário, o que eu disse
certa vez nos dois últimos versos de um soneto:
Da cabeceira para a foz
Tantas explicações
Para saber enfim
Que nada sei de mim.
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Cyro de Mattos - Escritor e poeta. Membro Titular da
Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris
Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.
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