O Rio
Cyro de Mattos
Nasce de um olho que pulsa na terra. Desce a montanha num fio e encontra o leito, que o espera dormindo no sono milenar da terra. Bebe nuvem, come terra e segue no passo de cobra. Às vezes cai em outro rio, vira réptil enorme com o volume de água que lhe dá mais força. Atravessa a floresta, o deserto e a várzea com seus pastos verdes à margem, povoados de reses.
Passa a ponte,
contorna a vila, avista a cidade. Desce ao largo, sereno, bonito de ser visto.
Despede-se das últimas casas na curva. Leva as cores que as borboletas tecem
nos barrancos. Os sons das manhãs e tardes na linguagem formada pelos pássaros.
Desde não sei quando acontece no seu destino de rio, rumo à sua morada última,
onde rapidamente esquece o que era doce. O peixe, o espelho, o murmúrio entre
as pedras polidas em carícia de água. Conversas com a lua, cantigas de
lavadeira, casos de pescador. Os modos do areeiro com a pá, retirando a areia
nos trechos rasos, do aguadeiro que traz a água boa e pura. Quando encontra o
mar, o rio esquece bichos como a lontra e o jacaré, que abocanham o peixe,
apurando a fome num estilo irado. Esquece até mesmo a pancada formosa. O vento,
o sol, a chuva, seus eternos companheiros de viagem.
Areia, pedra, peixe:
tão água. Rio-mar de tão grande. Falo do rio Amazonas, como não poderia deixar
de ser. Se for de águas negras o ano inteiro, refiro-me ao rio Negro. Se deixar
a terra fresca nas margens, depois da enchente, certamente é o Nilo no milagre
que faz surgir tantas lavouras para as populações ribeirinhas. Se for pequeno,
transborda nas cheias, traz árvore, bicho grande morto, submerge casas. E
assusta.
Os seres humanos sempre tiveram atração pela água, que é
fundamental à sobrevivência. As grandes civilizações surgiram às margens de
rios, citando-se aqui o Tigre e Eufrates, o Nilo, o Yangtse-Kiang. Cidades
importantes brasileiras ficam às margens de rios: São Paulo, Porto Alegre,
Recife, Aracaju, Belém e Manaus. Itabuna, chão de meu nascimento, também nasceu
às margens do rio Cachoeira, que divide a cidade em duas partes.
Rio que inspira poetas e prosadores. Os sinais visíveis da
escrita escorrem por caminhos de água e aos poucos vão erguendo um mundo. Não
tem rio que se compare com aquele que banha nossa infância. Veja o que nos diz
Fernando Pessoa, o genial poeta português, nesses versos: “O Tejo é mais belo
que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio
que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha
aldeia...” Quer dizer assim o poeta que o Tejo desce da Espanha, entra no mar
de Portugal, “toda a gente sabe isso”, mas ninguém tem conhecimento do rio que
passa na aldeia do poeta. Porque menos conhecido, pertencendo a menos gente, “é
mais livre e maior o rio de minha aldeia”, observa. O rio de Fernando Pessoa,
como o Cachoeira, “não faz pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé
dele.”, a navegar com gentes, coisas, num calendário que emerge de sentimento e
pensamento. Soletra manhãs e noites por meio da palavra chamada saudade, essa
janela íntima que as criaturas humanas gostam de abrir em seu estar no mundo.
O homem cumpre cuidar
o mundo em que vive, mas não é isso o que se vê há muito tempo. Não se toca com
o que desfaz em pouco instante, ceifando aquilo que a natureza demorou anos
para fazer com saber e arte. Uma lástima. É comum ver agora o rio agonizando,
morrendo de sede, como a dizer: viver assim não vale a pena, ao invés do amor
que dou, tanta morte me trazem. E dizer que qualquer rio só quer viver saudável,
em perfeito entendimento com a natureza. Não como o rio de minha terra, que há
anos chora água em sua descida triste. Nem de longe parece o rio de minha
infância. De tão viscoso agora, com os detritos despejados por bocas de
vômitos, de dia e de noite.
A mãe natureza dá poderes ao homem, fazendo da vida uma
aliança proveitosa, que se renova nas estações, entre o despontar dos verdes e
a colheita dos maduros. Na minha infância lembro das canoas que os pescadores
traziam carregadas de peixe. Mas a natureza cobra um preço alto quando é
maltratada. Não perdoa aquele que a fere sem hesitar um minuto.
O homem vem
desprezando a terra com nascentes puríssimas, afugentando as nuvens
derramadeiras de chuva com a derrubada das matas. Na sua aptidão de disseminar
a escuridão das coisas, prefere apertar com as mãos neutras a goela das águas.
No cortejo que ofende a muitos, como se nada de mais estivesse acontecendo,
continua fora do rio que brilha no raso e guarda tesouros no fundo.
Numa capacidade
incrível de persistir dentro da bruma.
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Cyro de Mattos é escritor de contos, crônicas, romance, poemas, literatura infantojuvenil, ensaio e memorialista. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Possui prêmios literários importantes. Também é editado no exterior.
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