Idioma de densas camadas
Entrei cedo na
escola dos ventos, nas ondas frias e atrevidas. Não sei aonde me vou, se nas
águas do Bósforo ou da Guanabara.
Tecida de onda e
vento, a língua de Istambul. Ouço rumores do livro didático: tekneler
yavas geçiyor, nos barcos que deslizam vagarosos.
Rio de Janeiro,
também uma Istambul dos trópicos. Leio o diário de Baghdãdĩ, ao narrar a
chegada de um navio otmano, vindo para uma secreta missão ao império do Brasil.
Disfarçados, assistem à missa de Páscoa na antiga Igreja da Sé.
Guardo de
tudo hüzün e saudade. Leio Machado e Tapinar, íntimos de Sterne, como
se amigos fossem entre si. A música do Memorial de Aires e do Instituto de
regulação dos relógios (Saatleri ayaarlama enstitüsü). E reúno versos de
Drummond e Nâzım Hikmet, Yunos Emre e Henriqueta Lisboa. Vizinhos potenciais,
nas prateleiras, no mundo aberto.
O turco é língua de
densas camadas. Pedra acesa na escuridão; fosforescente quanto ao timbre das
vogais. Tremas que cobrem o "o" e o "u"; formas longa
e breve do "a"; o "i" com ou sem ponto. Não há vogal de
férias. São oito que trabalham. Delas depende a vocação aglutinante, conduzida
pela harmonia vocálica. Quase demissonárias, as proporções. Porque os casos
gramaticais resolvem tudo, ou quase. Como os desenhos de um tapete universal.
No início, o turco
parece um mosaico. Um tipo de quebra-cabeça rigoroso, até ficarmos íntimos das
peças. Da língua escura nasce a luz de Caravaggio.
A parte desse undo
dedique Bizâncio. Fiz amizade ou traduzi vários poetas: Bejan Matur, Ataol
Behramoğlu, Tozan Alkan. Passei a traduzido e interrogado. Sem falar com Yunus
e o citado Nâzım.
Minha proximidade
com o árabe e o persa foram determinantes, para cantar Yine bir gülnihal,
de Dede Efendi.
Tenho o
livro-monumento dos poetas otomanos, o divã de Eliot, quase outra língua,
sortidae plural. Forma sagrada, corânica, no alfabeto persa.
Mais tarde, com a
decisão fonocêntrica, iniciada no século 19 e ultimada com a reforma de
Atatürk, ocorreu uma das maiores aventuras língua adentro. Dois autores, dentre
outros, levaram-me ao coração do processo, Geoffrey Lewis (The turkish
language: a catastrophic success) e Negris Ertürk (Grammatology and literary
modernity in Turkey).
Fantasmas sonoros,
imagéticos, redivivos, sonhos de laços míticos, laboratório, tubos de ensaio,
espelho côncavo.
O mito de Instambul
serviu, como Florença, a imprimir na cera a forma de uma língua. Ao mesmo
tempo, a chuva torrencial de neologismos, empréstimos das línguas asiáticas
afins. E as tantas sugestões de Ataç, Atay, Sayılı. A língua com seus jogadores
de cartas.
Depois veio a
teoria do sol, a güneş dil teorisi, sonho, baliza e represa ao processo
radical de substituição semântica, das palavras persas e árabes, em prol de uma
ilusória pureza (öz türkçe). A teoria de Kergic, distante da ciência e
pura ideologia, fez do turco a mãe de todas as línguas. Criava, a bem dizer,
uma trégua no campo da reforma linguística. Dois espectros de uma suposta fala
adâmica de origem turca (sem base etimológica): yaltrik > elétrico
e Ama uzum ("Mas é grande") > Amazônia!
Não morreram certas
franjas ideológicas. Um olho no Ocidente e outro na mítica Turan, com Ziya
Gökalp.
Os relógios de
Tanpınar batem hoje bem mais livres. O instituto perde a razão de ser. A
língua mede o presente infinito, porque dispõe de um vasto patrimônio. Cidades
invisíveis, como as de Calvino, de Xinjiang e Sarajevo. Não lhe faltam
recursos. Importa o modo de aplicar tanta riqueza. Não faltaram poetas, prontos
a gastar a generosa herança.
Comecei dizendo que
entrei cedo na escola dos ventos, nas ondas frias e atrevidas. O Bósforo e a
Guanabara.
O vento de
Instambul. Sopra incessante em toda parte. É brisa delicada ou temporal. Corre
para um destino irreverssível. Flecha do tempo, abraça agora passado e futuro.
Entre o Flamengo e Üsküdar. Ventro que varre as velhas ruas de Bizâncio. Sopra
nas ilhas Maricá e na torre de Gálata. Vento que nada pede para si. Apenas
beleza de seu torso nu.
comunitàitaliana | novem, 19/11/2022
https://www.academia.org.br/artigos/lingua-turca-ama-uzun
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Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL,
eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila , foi
recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha. Foi eleito
Presidente da ABL para o exercício de 2018, 2019, 2020 e 2021.
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