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domingo, 27 de novembro de 2022

LÍNGUA TURCA: AMA AZUN! - Marco Lucchesi


Idioma de densas camadas

Entrei cedo na escola dos ventos, nas ondas frias e atrevidas. Não sei aonde me vou, se nas águas do Bósforo ou da Guanabara.

Tecida de onda e vento, a língua de Istambul. Ouço rumores do livro didático: tekneler yavas geçiyor, nos barcos que deslizam vagarosos.

Rio de Janeiro, também uma Istambul dos trópicos. Leio o diário de Baghdãdĩ, ao narrar a chegada de um navio otmano, vindo para uma secreta missão ao império do Brasil. Disfarçados, assistem à missa de Páscoa na antiga Igreja da Sé.

Guardo de tudo hüzün e saudade. Leio Machado e Tapinar, íntimos de Sterne, como se amigos fossem entre si. A música do Memorial de Aires e do Instituto de regulação dos relógios (Saatleri ayaarlama enstitüsü). E reúno versos de Drummond e Nâzım Hikmet, Yunos Emre e Henriqueta Lisboa. Vizinhos potenciais, nas prateleiras, no mundo aberto.

O turco é língua de densas camadas. Pedra acesa na escuridão; fosforescente quanto ao timbre das vogais. Tremas  que cobrem o "o" e o "u"; formas longa e breve do "a"; o "i" com ou sem ponto. Não há vogal de férias. São oito que trabalham. Delas depende a vocação aglutinante, conduzida pela harmonia vocálica. Quase demissonárias, as proporções. Porque os casos gramaticais resolvem tudo, ou quase. Como os desenhos de um tapete universal.

No início, o turco parece um mosaico. Um tipo de quebra-cabeça rigoroso, até ficarmos íntimos das peças. Da língua escura nasce a luz de Caravaggio.

A parte desse undo dedique Bizâncio. Fiz amizade ou traduzi vários poetas: Bejan Matur, Ataol Behramoğlu, Tozan Alkan. Passei a traduzido e interrogado. Sem falar com Yunus e o citado Nâzım.

Minha proximidade com o árabe e o persa foram determinantes, para cantar Yine bir gülnihal, de Dede Efendi.

Tenho o livro-monumento dos poetas otomanos, o divã de Eliot, quase outra língua, sortidae plural. Forma sagrada, corânica, no alfabeto persa.

Mais tarde, com a decisão fonocêntrica, iniciada no século 19 e ultimada com a reforma de Atatürk, ocorreu uma das maiores aventuras língua adentro. Dois autores, dentre outros, levaram-me ao coração do processo, Geoffrey Lewis (The turkish language: a catastrophic success) e Negris Ertürk (Grammatology and literary modernity in Turkey).

Fantasmas sonoros, imagéticos, redivivos, sonhos de laços míticos, laboratório, tubos de ensaio, espelho côncavo.

O mito de Instambul serviu, como Florença, a imprimir na cera a forma de uma língua. Ao mesmo tempo, a chuva torrencial de neologismos, empréstimos das línguas asiáticas afins. E as tantas sugestões de Ataç, Atay, Sayılı. A língua com seus jogadores de cartas.

Depois veio a teoria do sol, a güneş dil teorisi, sonho, baliza e represa ao processo radical de substituição semântica, das palavras persas e árabes, em prol de uma ilusória pureza (öz türkçe). A teoria de Kergic, distante da ciência e pura ideologia, fez do turco a mãe de todas as línguas. Criava, a bem dizer, uma trégua no campo da reforma linguística. Dois espectros de uma suposta fala adâmica de origem turca (sem base etimológica): yaltrik > elétrico e Ama uzum ("Mas é grande") > Amazônia!

Não morreram certas franjas ideológicas. Um olho no Ocidente e outro na mítica Turan, com Ziya Gökalp.

Os relógios de Tanpınar  batem hoje bem mais livres. O instituto perde a razão de ser. A língua mede o presente infinito, porque dispõe de um vasto patrimônio. Cidades invisíveis, como as de Calvino, de Xinjiang e Sarajevo. Não lhe faltam recursos. Importa o modo de aplicar tanta riqueza. Não faltaram poetas, prontos a gastar a generosa herança.

Comecei dizendo que entrei cedo na escola dos ventos, nas ondas frias e atrevidas. O Bósforo e a Guanabara.

O vento de Instambul. Sopra incessante em toda parte. É brisa delicada ou temporal. Corre para um destino irreverssível. Flecha do tempo, abraça agora passado e futuro. Entre o Flamengo e Üsküdar. Ventro que varre as velhas ruas de Bizâncio. Sopra nas ilhas Maricá e na torre de Gálata. Vento que nada pede para si. Apenas beleza de seu torso nu.

comunitàitaliana | novem, 19/11/2022

 

https://www.academia.org.br/artigos/lingua-turca-ama-uzun

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Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL, eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila , foi recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha. Foi eleito Presidente da ABL para o exercício de 2018, 2019, 2020 e 2021.

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