Carlos
Sousa, durante muitos anos, viveu em Itabuna. Teve roça de cacau, fazenda de
pecuária, indústrias, e um grande número de amigos. Desfrutou das melhores
condições sociais, políticas e econômicas. Não foi feliz, fracassou no
comércio, na lavoura, na pecuária. Fracassou, onde todos prosperavam. Faliu, onde
todos enriqueceram. Perdeu o nome, ele que poderia ser considerado um homem de
bem e onde um simples trabalhador rural conseguia, em pouco tempo, o pomposo
título de “coronel do cacau”, título de riqueza e consideração.
Afastou-se
de Itabuna, sem uma queixa, sem mágoa, sem ressentimento. Não havia amealhado o
ouro, mas havia vivido numa terra maravilhosa, na convivência de seres humanos,
dotados de qualidades, de inteligência, de capacidade de trabalho, um gênio
empreendedor.
Jamais
poderia esquecer-se de Oscar Marinho, das suas palestras macias, sutis,
maliciosas, da sua objetividade e daquela expressão que usava, quando
confessava que tinha dois corações, um do lado direito, que funcionava para os
negócios, outro do lado esquerdo, que funcionava para a vida do seu corpo.
Carlos Sousa só possuía o coração do lado esquerdo.
E de
outros velhos companheiros, como Zacarias de Sousa Freire, de Ápio Lopes,
Nicodemos Barreto, Artur Nilo de Santana, Astério Rebouças, Alfeu Suzart de
Carvalho, Martinho Conceição, lutadores do progresso itabunense. Isto para não
falar mais do Tourinho da farmácia, das suas palestras, das suas má-criações.
Nunca
ouviu Tourinho falar bem de um companheiro. Dos santos, ele só se referia bem a
São José; ao resto não dava a menor atenção. Num tempo em que todo mundo
respeitava os “responsos” do Moura Teixeira, para curar moléstias e
picadas de serpentes, Tourinho mangava abertamente desses “milagres”.
Gente
ordinária, Carlos Sousa havia também conhecido, em Itabuna, mas preferia
esquecê-la, como aquele pecuarista do “Pau Vermelho”.
Que homem
estúpido, malcriado, cheio de si, como se ele no invés do dinheiro, valesse
alguma coisa. Também essa gente servia para contraste. Se não fosse um cidadão
miserável como esse, como poderia avaliar a bondade de um cidadão, como foi
Astério Rebouças?
Tudo isso
pertencia ao passado. Agora, em outra terra, Carlos Sousa tratava de uma vida,
exercia outras atividades. O mundo não mudava. Sempre foi assim. No particular,
Moura Teixeira talvez estivesse com a razão, quando afirmava que, neste vale de
lágrimas, a vida é passageira, é uma provação.
Em Itabuna
ele, Carlos Sousa, passara uma parte da sua vida. Certamente o espírito que
vivia no seu corpo era aquele que lhe havia revelado, numa sessão, “D. Ceci”, o
espírito de um insatisfeito. Um espírito
que lutava para possuir uma fortuna imensa, para acumular riqueza enorme.
Tanto que se metia em dezenas de negócios, com uma ânsia desesperadora de
enriquecer. Não se contentava com o pouco, queria muito, dominar o muito, e por
isso mesmo caíra como pássaro sem asas. Antes assim. Pior seria que seu
espírito fosse atormentado pela ganância furiosa e a sovinice miserável que
dominavam aquele médico, Dr. Coriolano Antunes. Que monstruosidade, que
sofrimento! O homem só queria ganhar e
não gastar. Era de uma miserabilidade incompreensível. E como sofria a sua mulher!
Coitada, não tinha direito a nada, nem a se vestir, nem a comer, nem a se
divertir e, ainda, era obrigada a suportar a falta de respeito do marido, com
as amas, as visitas, que frequentavam a sua casa. Parecia a Carlos Sousa que a
provação do Dr. Coriolano se revestia de uma pena mais severa, mais dura.
Quantos corpos, quantas vidas, não necessitaria o espírito do Dr. Coriolano
para purificar-se até ao ponto de estender a mão para dar uma esmola?
Enfim
Carlos Sousa não queria pensar muito nestas coisas, com medo de perder o juízo.
Estava pobre e fora de Itabuna.
Consolava-se, é verdade, com as revelações espiritualistas, mas, no
fundo, tinha a certeza de que tudo isso era consequência da luta materialista e
capitalista. Luta cruel da concorrência, na qual um empobrecia, outro
enriquecia. Um acumulava, outro se esvaziava. Homens e nações se empenhavam
nessa batalha tremenda de amontoar riquezas e, quando um homem, ou uma nação
conseguia amealhar, outro homem e outra nação sofriam as consequências e eram
levados à miséria. Os resultados se positivavam em desequilíbrios sociais que
levavam à fome, às revoluções e à guerra, de quando em quando.
Falava-se
num mundo melhor que a Rússia estava criando. Não acreditava muito nesse mundo
povoado pelos homens secularmente defeituosos.
Os homens,
como as feras, como as serpentes, possuíam qualidades que o nascimento dava e
somente a cova tirava. Quantos homens, antes e depois de Cristo, tinham
imaginado um mundo mais justo e mais tolerante, no qual a infância não sofresse
e a velhice não permanecesse abandonada?
A cobiça
humana sepultava os sentimentos bons. Muitas vezes ele sonhava que a humanidade
era um pantanal sem fim, no qual brotava, , de longe em longe, a flor da
virtude representada num lírio, alvo, como a luz da manhã, que entrava pela
janela do seu quarto na casa que morava â beira do oceano, no bairro proletário
do Malhado, na cidade de Ilhéus. Pensava nestas coisas e se contentava. Afinal
de contas a felicidade não estava na riqueza como não estava na pobreza.
Encontrava-se na paz do espírito. Não havia nas suas mãos dinheiro que desse
para comprar o que desejava de luxo ou capricho; existia, todavia, espaço para
o seu espírito elevar-se, pairar no reino das coisas belas e maravilhosas, que
somente a inteligência pode construir, para lenitivo e paz da consciência.
(TERRAS DE ITABUNA – Cap. XXIX)
Carlos Pereira Filho
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