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quinta-feira, 14 de julho de 2022

Paulino e Roberto

Artur Azevedo

 


                 O Paulino toda vida remou contra a maré.

            Para cúmulo da desgraça, o destino atirou-lhe nos braços uma esposa que não era precisamente o sonhado modelo de meiguice e dedicação.

            Adelaide não lhe perdoava o ser pobre, o ganhar apenas o necessário para viver. O seu desejo era ter um vestido por semana e um chapéu de quinze em quinze dias, possuir um escrínio de magníficas joias, deslumbrar a rua do Ouvidor, frequentar bailes e espetáculos, tornar-se a rainha da moda. Não se podia conformar com aquela vida de privação e trabalho.

            O Paulino era a bondade em pessoa, afligia-se muito por não poder proporcionar à sua mulher a existência que ela ambicionava. Fazendo um exame de consciência, o mísero acusava-se de haver sacrificado a pobre moça, que, bonita e espirituosa como Deus a fizera, teria facilmente encontrado um marido com recursos bastantes para satisfazer todos os seus caprichos de Frou-frou³ sem dote.

            Ele só tinha um amigo, um amigo íntimo, seu companheiro de infância, o Vespasiano, que um dia lhe disse com toda brutalidade:

            - Tua mulher é insuportável! Eu, no teu caso, mandava-a para o pasto.

            - Oh! Vespasiano! Não diz isso!...

            - Digo, sim! Senhor! Digo e redigo!... Vocês não têm filhos; portanto, não há consideração nenhuma que te obrigue a aturar um diabo de mulher que todos os dias te lança em rosto a tua pobreza, como se ela te houvesse trazido algum dinheiro, e o esbanjasses!...

            - Isso não é conselho que se dê a um amigo, nem eu tenho razões para me separar de Adelaide.

            - Pois não te parece razão suficiente essa eterna humilhação a que ela te condena?

           - Pois sim, mas quem me manda ser tão caipora?

           - Não creias que, se melhorasses de posição, ela melhoraria de gênio. Aquela é das tais que nunca estão contentes com a sorte, nem se lembram que Deus dá o frio conforme a roupa. Se algum dia chegasses a ministro, ela não te perdoaria não seres presidente da República!

            - Exageras.

            - Pode ser, mas afianço-te que mulher assim não a quisera eu nem pesada a ouro! Prefiro ficar solteiro.

            Efetivamente. Vespasiano, apesar de ser muito amigo de Paulino, não o frequentava, tal era a aversão que lhe causava a presença de Adelaide. Não a podia ver.

 

            Paulino em vão procurava por todos os meios e modos melhorar a vida, aumentando o parco rendimento, quando um comerciante, seu conhecido, lhe propôs uma pequena viagem ao Rio Grande do Sul, para a liquidação de certo negócio. Era empresa que lhe poderia deixar um par de contos de réis, se fosse bem-sucedida.

           Instigado pela mulher, a quem sorria a perspectiva de alguns vestidos novos, Paulino partiu para o Rio Grande a bordo do Rio Apa; tendo porém, desembarcado em Santa Catarina, perdeu, não sei como, o paquete, e foi obrigado a esperar por outro.

            Antes que esse outro chegasse, recebeu a notícia de que o Rio Apa naufragara, não escapando nenhum homem da tripulação, nem passageiro algum. Do próprio paquete não havia o menor vestígio. Sabia-se que naufragara porque desaparecera.

            Paulino agradeceu a Deus por ter escapado milagrosamente ao naufrágio.

 

            Ao ver o seu nome impresso, nos jornais, entre os das vítimas, atravessou-lhe o espírito a ideia de calar-se, fazendo-se passar por morto. Não sei se ele teria lido o Jaques Amour, de Zola, ou a Viuvinha, do nosso Alencar.

            - Em vez de me livrar da Adelaide, como aconselhava o Vespasiano, livrá-la-ei de mim. Ora está dito! Seremos ambos mais felizes...

            Ninguém o conhecia em Santa Catarina, e ele, de ordinário taciturno e reservado, a ninguém se queixara de haver perdido a viagem, de modo que pôde executar perfeitamente o seu plano. Calou-se, muito caladinho, e deixou que a notícia da sua morte circulasse livremente, como a dos demais passageiros do Rio Apa.

            Escusado é dizer que mudou de nome.

            Tendo feito conhecimento com um rico industrial teuto-brasileiro, ex-colono de Blumenau, foi com este para o interior da província, e, como era inteligente e trabalhador, não tendo mulher que o “encabulasse”, arranjou muito bem a vida, conseguindo até por de parte algum pecúlio.

 

           Passaram-se os anos sem que Roberto, o ex-Paulino, tivesse notícias de Adelaide.

           Resolveu um dia ir ao Rio de Janeiro, a passeio, convencido de que ninguém mais se lembraria dele, nem o reconheceria, pois deixara crescer a barba, engordara extraordinariamente, e tinha um tipo muito diverso do de outrora.

            O seu primeiro cuidado foi passar pela casinha de porta e janela onde morava, na rua do Alcântara, quando embarcou para o Sul. Não a encontrou: tinham erguido um prédio no local outrora ocupado pelo ninho dos seus amores sem ventura.

            Informou-se na venda próxima que fim levara a viúva de um tal Paulino, morador naquela rua, náufrago do Rio Apa: mas ninguém se lembrava dessa família, e ele teve a sensação de que era realmente um defunto.

            Procurou ver Vespasiano, e viu-o, quando saía da Alfândega, onde era empregado. O seu movimento foi correr para o amigo e dizer-lhe: Olha! Sou eu! Não morri! Venha de lá um abraço!; mas conteve-se, e deixou-o passar, saboreando um cigarro.

            - Como está velho! – pensou Paulino - eu decerto não reconheceria, se o supusesse  tão morto como ele me supõe a mim! Deixá-lo! Eu morri deveras, e nada lucraria em ressuscitar, mesmo para ele, que era meu único amigo.

           

            Bem inspirado andou o morto em não se dar a conhecer, porque, alguns dias depois, achando-se num bondinho da praça Onze, atravessando a rua do Riachuelo, viu entrar no carro o Vespasiano acompanhado por uma senhora que era Adelaide sem tirar nem por.

            Paulino conteve o natural sobressalto que lhe causou aquela aparição.

            Ela vinha muito irritada. Logo que sentou, voltou-se com mau modo para Vespasiano, e disse-lhe:

            - Eu logo vi que você me dizia que não!

            Paulino reconheceu a voz da sua viúva.

            - Mas, reflete bem, Adelaide; aquele dinheiro está destinado para o aluguel da casa, e tu não tens assim tanta necessidade de uma capa de seda!

            Adelaide soltou um grande suspiro, e expectorou esta queixa bem alto para que todos a ouvissem:

            - Meu Deus! Que sina a minha de ter maridos pingas! Você ainda é pior que o outro!

            - Ah! se ele pudesse ver-nos lá do outro mundo – murmurou entre os dentes Vespasiano – como se riria de mim!

            Roberto ficou muito sério, olhando com indiferença para a rua, mas Paulino riu-se, efetivamente, no fundo do oceano.

            

Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo), jornalista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde criou a cadeira nº 29, que tem como patrono Martins Pena.

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