Paulino e Roberto
Artur
Azevedo
O Paulino toda vida remou contra a maré.
Para
cúmulo da desgraça, o destino atirou-lhe nos braços uma esposa que não era
precisamente o sonhado modelo de meiguice e dedicação.
Adelaide
não lhe perdoava o ser pobre, o ganhar apenas o necessário para viver. O seu
desejo era ter um vestido por semana e um chapéu de quinze em quinze dias,
possuir um escrínio de magníficas joias, deslumbrar a rua do Ouvidor,
frequentar bailes e espetáculos, tornar-se a rainha da moda. Não se podia
conformar com aquela vida de privação e trabalho.
O Paulino
era a bondade em pessoa, afligia-se muito por não poder proporcionar à sua
mulher a existência que ela ambicionava. Fazendo um exame de consciência, o
mísero acusava-se de haver sacrificado a pobre moça, que, bonita e espirituosa
como Deus a fizera, teria facilmente encontrado um marido com recursos
bastantes para satisfazer todos os seus caprichos de Frou-frou³ sem dote.
Ele só tinha um amigo, um amigo
íntimo, seu companheiro de infância, o Vespasiano, que um dia lhe disse com
toda brutalidade:
- Tua
mulher é insuportável! Eu, no teu caso, mandava-a para o pasto.
- Oh!
Vespasiano! Não diz isso!...
- Digo,
sim! Senhor! Digo e redigo!... Vocês não têm filhos; portanto, não há
consideração nenhuma que te obrigue a aturar um diabo de mulher que todos os
dias te lança em rosto a tua pobreza, como se ela te houvesse trazido algum dinheiro,
e o esbanjasses!...
- Isso não
é conselho que se dê a um amigo, nem eu tenho razões para me separar de
Adelaide.
- Pois não
te parece razão suficiente essa eterna humilhação a que ela te condena?
- Pois sim,
mas quem me manda ser tão caipora?
- Não
creias que, se melhorasses de posição, ela melhoraria de gênio. Aquela é das
tais que nunca estão contentes com a sorte, nem se lembram que Deus dá o frio
conforme a roupa. Se algum dia chegasses a ministro, ela não te perdoaria não
seres presidente da República!
-
Exageras.
- Pode
ser, mas afianço-te que mulher assim não a quisera eu nem pesada a ouro!
Prefiro ficar solteiro.
Efetivamente. Vespasiano, apesar de ser muito amigo de Paulino, não o
frequentava, tal era a aversão que lhe causava a presença de Adelaide. Não a
podia ver.
Paulino em
vão procurava por todos os meios e modos melhorar a vida, aumentando o parco
rendimento, quando um comerciante, seu conhecido, lhe propôs uma pequena viagem
ao Rio Grande do Sul, para a liquidação de certo negócio. Era empresa que lhe
poderia deixar um par de contos de réis, se fosse bem-sucedida.
Instigado
pela mulher, a quem sorria a perspectiva de alguns vestidos novos, Paulino
partiu para o Rio Grande a bordo do Rio Apa; tendo porém, desembarcado em Santa
Catarina, perdeu, não sei como, o paquete, e foi obrigado a esperar por outro.
Antes que
esse outro chegasse, recebeu a notícia de que o Rio Apa naufragara, não
escapando nenhum homem da tripulação, nem passageiro algum. Do próprio paquete
não havia o menor vestígio. Sabia-se que naufragara porque desaparecera.
Paulino
agradeceu a Deus por ter escapado milagrosamente ao naufrágio.
Ao ver o
seu nome impresso, nos jornais, entre os das vítimas, atravessou-lhe o espírito
a ideia de calar-se, fazendo-se passar por morto. Não sei se ele teria lido o
Jaques Amour, de Zola, ou a Viuvinha, do nosso Alencar.
- Em vez de me livrar da Adelaide, como
aconselhava o Vespasiano, livrá-la-ei de mim. Ora está dito! Seremos ambos mais
felizes...
Ninguém o
conhecia em Santa Catarina, e ele, de ordinário taciturno e reservado, a
ninguém se queixara de haver perdido a viagem, de modo que pôde executar
perfeitamente o seu plano. Calou-se, muito caladinho, e deixou que a notícia da
sua morte circulasse livremente, como a dos demais passageiros do Rio Apa.
Escusado é
dizer que mudou de nome.
Tendo feito conhecimento com um rico
industrial teuto-brasileiro, ex-colono de Blumenau, foi com este para o
interior da província, e, como era inteligente e trabalhador, não tendo mulher
que o “encabulasse”, arranjou muito bem a vida, conseguindo até por de parte
algum pecúlio.
Passaram-se
os anos sem que Roberto, o ex-Paulino, tivesse notícias de Adelaide.
Resolveu um
dia ir ao Rio de Janeiro, a passeio, convencido de que ninguém mais se
lembraria dele, nem o reconheceria, pois deixara crescer a barba, engordara extraordinariamente,
e tinha um tipo muito diverso do de outrora.
O seu primeiro
cuidado foi passar pela casinha de porta e janela onde morava, na rua do
Alcântara, quando embarcou para o Sul. Não a encontrou: tinham erguido um
prédio no local outrora ocupado pelo ninho dos seus amores sem ventura.
Informou-se
na venda próxima que fim levara a viúva de um tal Paulino, morador naquela rua,
náufrago do Rio Apa: mas ninguém se lembrava dessa família, e ele teve a
sensação de que era realmente um defunto.
Procurou ver
Vespasiano, e viu-o, quando saía da Alfândega, onde era empregado. O seu movimento
foi correr para o amigo e dizer-lhe: Olha! Sou eu! Não morri! Venha de lá um
abraço!; mas conteve-se, e deixou-o passar, saboreando um cigarro.
- Como
está velho! – pensou Paulino - eu decerto não reconheceria, se o supusesse tão morto como ele me supõe a mim! Deixá-lo! Eu
morri deveras, e nada lucraria em ressuscitar, mesmo para ele, que era meu
único amigo.
Bem inspirado
andou o morto em não se dar a conhecer, porque, alguns dias depois, achando-se
num bondinho da praça Onze, atravessando a rua do Riachuelo, viu entrar no
carro o Vespasiano acompanhado por uma senhora que era Adelaide sem tirar nem
por.
Paulino conteve
o natural sobressalto que lhe causou aquela aparição.
Ela vinha
muito irritada. Logo que sentou, voltou-se com mau modo para Vespasiano, e
disse-lhe:
- Eu logo vi que você me dizia que não!
Paulino reconheceu
a voz da sua viúva.
- Mas,
reflete bem, Adelaide; aquele dinheiro está destinado para o aluguel da casa, e
tu não tens assim tanta necessidade de uma capa de seda!
Adelaide soltou
um grande suspiro, e expectorou esta queixa bem alto para que todos a ouvissem:
- Meu
Deus! Que sina a minha de ter maridos pingas! Você ainda é pior que o outro!
- Ah! se
ele pudesse ver-nos lá do outro mundo – murmurou entre os dentes Vespasiano –
como se riria de mim!
Roberto ficou
muito sério, olhando com indiferença para a rua, mas Paulino riu-se,
efetivamente, no fundo do oceano.
Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de
Azevedo), jornalista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de
1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao
lado do irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de
Letras, onde criou a cadeira nº 29, que tem como patrono Martins Pena.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário