Era só Saudade de Eunice
Gostaria que a moça se chamasse Eunice, nome perfeitamente assentado.
Ela
passava pelo meio da rua em pleno trânsito de pessoas e lançou para ele um
olhar discreto, mas como quem repara; sentiu que a moça ia apressada, por isso
não entendeu por que o olhar dela pareceu-lhe transmitir alguma mensagem, como
a perguntar, “tudo bem, Miraldo?”. Apesar da rapidez, pôde notar-lhe os traços
do rosto, a boca de lábios finos, o cabelo de índio. Como seria o nome da moça?
Mesmo que fosse coisa estranha, para ele seria Eunice, certamente o mais
adequado. Quase impossível chamar-se Shirley ou Ingrid – índio não tem nome de
gringo. – E se a moça tivesse um sinalzinho preto entre um seio e outro, tudo
ficaria justificado, indubitavelmente. Melhor ainda se ela tivesse uma
obturação de ouro na parte superior dentária, lado direito, igual a de Eunice
que fora sua vizinha na Praça Independência onde ele se criou.
Tinha
claras lembranças de Eunice, bonita, cabelo de índio, um sinalzinho preto
embutido entre um seio e outro, descoberto por ele na praia durante um banho de
mar. Chegou a apaixonar-se por Eunice, de repente, e o negócio só não foi para
a frente por causa da diferença de idades, ela com vinte, ele com menos de
quinze. “Besteira”, pensava agora, lamentando a perda.
Pensou em
outros nomes para a moça que passara por ele no meio da rua regurgitando de
gente apressada mas nenhum assentava bem como Eunice, adequado para o tipo de
cima a baixo. Teve vontade de segui-la rua a fora mas a esse tempo ela havia se
perdido entre o burburinho de pessoas apressadas desviando-se umas das outras.
Uma confusão. Voltou algumas jardas, numa tentativa; nem adiantou, a moça havia
sumido definitivamente. Sabia, sem dúvida, não tratar-se de Eunice, o tempo
entre uma e outra já era longo, mais de doze anos. Eunice, hoje, estará
amadurecida, mesmo que não tenha cabelo branco, coisa pouco provável para gente
índia, com a pele enrugando, os seios caindo, os olhos frios, criando uma ruma
de meninos, muito trabalho e outras consumições que ele as sabia.
A moça que
vira no meio da rua agitada, seria igual a Eunice moderna no tempo em que
morava na Praça Independência, bonita,
saudável, cabelo liso parecendo seda. Será que a moça do meio da rua terá um
sinalzinho preto? Havia outros detalhes que justificavam a parecença das duas,
com o olhar atravessando despretensioso, colo amplo, de tonalidade morena
uniforme como se fora veludo; o jeito do cabelo exótico partido ao meio, a
derramar-se em brilho pelo rosto, às vezes escondendo os olhos que no momento cruzaram-se
rapidamente para ele, cara a cara, como a perscrutar-lhe curiosos. Um susto! Notara até os pés da moça medidos
numas sandálias vermelhas semelhantes às que Eunice gostava nos dias de sol,
nas tardes de domingo pelo jardim no meio da praça Independência. Tudo lhe
esquentara o juízo, mais ainda depois que ele deu de olho no sinalzinho cravado
entre um seio e outro. Certo é que banzou por Eunice e só perdeu a esperança
depois que ela meteu-se com um sujeito sarará que vendia utensílios de alumínio
pelas portas.
Andou algum tempo lembrando da moça de
cabelo liso parecida com Eunice que morou na praça Independência, que
desentendeu-se com ele por causa da diferença de idades. Quantos anos teria o
sujeito que vendia alumínio pelas portas? Vermelho, espadaúdo, braços robustos
recobertos de cabelos cor de cobre. Sentia a presença do sujeito na praça pelo
estrídulo da buzina. Tipo esquisito, desassentado para Eunice da cor de índio,
cabelo brilhando, sinalzinho preto entre um peito e outro. Será que o sujeito visgou-se
a ela por causa do sinal? – indagava-se, a momentos, à toa.
Fazia
calor, estava pingando de suor; entrou numa lanchonete e pediu um sorvete duplo,
de coco, enquanto lembrava de Eunice, da moça de olhar atravessando, no meio da
rua, gente que só formiga. Meditou, finalmente, que nunca mais voltaria a
vê-la, a não ser através da imagem de Eunice fincada de corpo inteiro em seu
miolo, desde o tempo da praça Independência; na janela, no jardim, na
lanchonete onde tomava sorvete, tudo isso antes de embaraçar-se com o sujeito
sarará que vendia utensílios de alumínio pelas portas, tocando uma buzina
insuportável.
(LINHAS INTERCALADAS)
Ariston Caldas
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