Quando Etelvina fugiu
Quando
Caboclo raptou a namorada, a cidadezinha ficou apinhada de cochichos, pelos
becos, pelas esquinas, por cima dos passeios. Notei a diferença lá em casa.
Minha mãe
falava meio abafado com minha tia, pelos cantos. Primeiro, na porta da cozinha.
Ao pressentirem minha presença, elas calavam a boca; depois, prosseguiam no
mesmo, de cochichada. Eu, sonsando, entendia somente as palavras soltas e
frases curtas que não faziam nenhum sentido – “Etelvina”, “seis horas”, “o
defeito dele é ser pobre”. Num momento fiquei de olho dura para minha mãe.
“Saia daqui, menino abelhudo”, exclamou minha tia, arregalando os olhos para
mim. Só vim saber da encrenca no outro dia, por conversinha de rua.
O sujeito
havia roubado Etelvina. Eu o conhecia de perto, ele jogando futebol; tinha as
pernas finas e cabeludas como de macaco. No dia seguinte à ocorrência do rapto,
os dois casaram na presença do padre, do delegado de polícia, do pai dela, do
Juiz de Paz e de dois praças.
Caboclo
tinha muitos predicados contra si, entre outros, ser jogador de futebol,
negócio de malandro, naquele tempo; tocador de violão – ainda pior -, e dono de
uma padaria mixuruca que os trocistas chamavam de pinoia; produzia cem
pãezinhos por dia. Daí as embirrações dos familiares da moça. Mas, como paixão
é coisa perigosa, o romance resultou no rapto da moça que teria ocorrido de
canoa, à boquinha da noite. Ela, portando uma valise com alguns pertences
pessoais, saltou com ele no outro lado do rio e foi confinada na fazenda de uma
família íntima.
A
instantes, os boatos ganharam as ruas; o disse-me-disse enramou-se por toda
parte. Já tarde da noite, a irmã mais velha de Etelvina apareceu chorosa lá por
casa, enxugando os olhos com um lenço bordado. Soluçando – ninguém sabe se de
verdade ou de mentira, ela conversava sôfrega com minha mãe, com minha tia, as
três sentadas em torno da mesa preta e comprida da sala de jantar.
A cidade
mudou de repente. As ruas, normalmente silenciosas e escuras como breu quando a
noite caía, regurgitavam assim de gente; os quatro soldados do destacamento
local saíram perfilados para as ruas. Fuzis a tiracolo, cartucheiras
atravessadas pelos peitos, rostos erguidos, enfatuados. Num bar iluminado a
carbureto, pessoas se juntavam murmurando entre si, umas soltando risadinhas
espremidas; outras, pensativas, fingindo-se preocupadas. Um sujeito estonteado
que costumava mijar pelos passeios dos outros, gritava vez em quando: “Você
viu? Tomou no xibiu!”. Enquanto pulava, batia palmas e mexia a bunda. Seu
Guilardo, dono de uma farmácia, alisava o cavanhaque ruivo e dizia, enfático:
“Vocês tão vendo? Sinal dos tempos! Quem diria, uma menina daquela idade...
coitada, agora foi pro brejo”. Pessoas ao redor ouviam admiradas, as
ponderações de seu Guilardo, aprovando-o perfeitamente. Segundo seu Ribeiro,
agente dos Correios e homem dos mais sérios do lugar, ele próprio vira o pai de
Etelvina escorado na janela, azeitando uma arma de fogo, ruminando como boi
acuado. “Aquele moleque vai ver com quantos paus se faz uma cangalha!” –
rosnava.
Como eu
disse, Etelvina e Caboclo casaram policiados. Ele, em manga de camisa, sem
gravata; ela, sem véu, sem grinalda. Depois do ato deixaram a cidade,
certamente fugindo dos lenga-lengas que permaneceram nem sei quanto tempo. Não
sei, também, o quanto duraram as hostilidades entre as duas famílias. O pai de
Etelvina estribava: “Não quero vê-la nem morta!”
(LINHAS INTERCALADAS)
Ariston Caldas
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Ariston
Caldas nasceu em Inhambupe, norte da Bahia, em 15 de dezembro de
1923. Ainda menino, veio para o Sul do estado, primeiro Uruçuca, depois
Itabuna. Em 1970 se mudou para Salvador onde residiu por 12 anos. Jornalista de
profissão, Ariston trabalhou nos jornais A Tarde, Tribuna da Bahia e
Jornal da Bahia e fundou o periódico ‘Terra Nossa’, da Federação dos
Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia; em Itabuna foi redator
da Folha do Cacau, Tribuna do Cacau, Diário de Itabuna, dentre outros. Foi
também diretor da Rádio Jornal.
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