Duas
mulheres guerreiras de Jorge Amado
Cyro de Mattos
Reconhecido
como o embaixador símbolo do povo brasileiro no exterior, Jorge Amado, o baiano
que dizia ser a sua paixão escrever, viver sem ela não fazia sentido diante das
incompletudes da vida, no romance Tieta do Agreste cria uma das
personagens femininas mais sensuais e rica de caráter para ficar em definitivo
com a sua grandeza na prateleira da sua galeria de mulheres inesquecíveis,
elaboradas com imagens certeiras, bem forjadas nos traços do caráter e curvas
de cada beleza, como ressoam na retina os casos de Gabriela, Dona Flor e Teresa
Batista, para citar algumas.
Liberação
sexual, luta pelo poder, necessidade de preservar o meio ambiente, conflito
entre o atraso e o progresso são alguns dos ingredientes formadores do cenário
provinciano de Santana do Agreste, palco onde vai se desenrolar o enredo
protagonizado por Tieta, a pastora de cabras, representante da garra e ardência
da vida, expulsa pelo pai por ser muito namoradeira. E, pelo outro lado
Perpétua, a irmã rival, ciumenta, invejosa, com um caráter mesquinho, que
encarna tudo que é maledicência para nutrir a alma com negações nos dias cor de
sombras.
A volta de
Tieta de São Paulo cria um rebuliço no ambiente da vidinha provinciana, da
cidade estagnada no tempo, alimentada dos valores mesquinhos, da fuxicaria na
falta de perspectivas, acostumada à vigilância dos que vivem de vigiar a vida
alheia, sem razão para alcançar os horizontes dos melhores dias. A menina que saíra pobre da sua terra natal
voltava agora amadurecida, cheia de ímpeto para lutar contra os velhos
costumes, pela valorização do meio ambiente, trazendo esperança à localidade
com a instalação da energia elétrica, disseminando novos meios de vida no lugar
dos preconceitos e das desigualdades sociais.
Aos poucos,
o romancista, que aderiu ao humor no lugar do juízo de valor no estilo, vai
colocando nas páginas dúvidas sobre a vida de Tieta em São Paulo. Não se fizera
a moça sedutora que inquietava os homens, nem casara com um comendador rico.
Não passara de dona de um bordel de prostitutas, exploradora de mulheres da
vida, que frequentavam a sua casa, fazendo na prostituição com que suas
condições produzissem a riqueza necessária para o bem-estar da vida. Para muitos em Santana do Agreste o que
importava era sua maneira nova de ver a vida, a garra que transmitia para que a
esperança motivasse livres movimentos, ideias e sentimentos misturados com
fervorosa ternura, na qual sobressaía a garra da vida vivida ardentemente, com
seus lances repletos de inquietações em caminhos contraditórios, desafiadores
na natureza.
De maneira até
certo ponto idêntica com Tieta do Agreste, a leitura de Teresa Batista
cansada de guerra (1977), de Jorge Amado, forte romance, pleno de
verdades, nos força a pensar sobre aquela mulher não resignada, que rola no
mundo. Aquela a quem um dia elogiei com este poema:
Para onde vá sem voz
Deixa que seja levada.
Maneira de ser conduzida
Expressa o espaço inútil.
Rolam anos de vergonha,
O que podemos achar nela?
Amanhecer é preciso
Apesar das opressões.
Chega! Um grito é capaz
De parir as próprias emoções.
Sabe que viver são ondas
Passando pelo mito da mulher.
Significa enfim o arrojo
Ao alcance da verdade.
Tal qual o parceiro na lida
De frente para o mundo.
A personagem
Teresa Batista simboliza a vida de muitas mulheres marcadas pela violência
física e psicológica do machismo, preconceito e injustiça social. Sua história
caracteriza-se pelas circunstâncias de uma garra mística, que exibe sem
romantismos o contexto formado de negações, entranhado na desumanidade, no
machismo que ofende e não se dá por satisfeito porque está nas entranhas do
irracionalismo.
A narrativa
de alentado volume une as pontas de passado e presente, com feição de cordel em
muitas passagens, dando uma visão certeira das relações sociais da Bahia em
meados do século XX. No centro das atenções, à mulher reserva-se o polo passivo
da submissão, que lhe é imposto sem concessão, para ser vista como alguém
relegado à passividade, dominada pelas normas de desumanidade e preconceito.
De regresso
a Sergipe, depois de solta com a intervenção do advogado Lulu Santos, a estrela
da noite fará sua estreia no cabaré famoso. A cena do homem que, na pista de
dança, bate na sua mulher, deixa essa heroína das gentes indefesas com sangue
nos olhos. Fere os brios de quem não gosta de ver homem batendo em mulher. Vai
para cima dele, a briga rende-lhe ferimentos e a quebra dos dentes, é presa.
Tem início aí o inconformismo da personagem, que terá uma imagem construída com
valentia e misticismo, a se opor sempre contra as injustiças cometidas pelo
sistema de poder contra a mulher.
O espírito
de revolta dessa mulher incrível está ligado ao passado sofrido, reiterado pela
pobreza, abandono e exploração sexual. Para atenuar as negações do mundo,
acompanham-na três orixás, de quem herda forças e virtudes que lhe infundem o
caráter. De Iansã, dona dos raios e tempestades, ela herda a coragem e a
valentia, de Omolu, orixá que cura as moléstias, a perseverança de quem tudo dá
e nada quer em troca, pois como reza o canto, “o mundo de Deus é grande, trago na mão fechada, o pouco
com Deus é muito, o muito sem Deus é nada.” De Oxalá, dono de Olorum, o pai de
todos os orixás, tem o socorro da mão protetora, que a salva das ocasiões
perigosas.
Menina,
órfã, aos doze anos, por uma ninharia é vendida pelos tios ao capitão
Justiniano Duarte da Rosa, conhecido na região pelas falcatruas, corrupções e
estupros. Sua tara tende para preferir as vítimas que mal tinham tido a
primeira relação sexual. Teresa Batista torna-se propriedade sexual exclusiva
do capitão, violentada todos os dias, durante anos. Numa proeza em que entram a audácia e o
espírito místico, ela consegue escapar da prisão na casa do capitão Justiniano.
Por sua valentia atuante nas causas justas,
vai para a prisão, torna-se amante de um coronel, que certa vez a libertou.
Depois que ele morre, volta à prostituição para poder se sustentar, até que
encontra o jovem médico, junta-se a ele, que a leva para uma cidadezinha no Sergipe.
Lá é que outra vez se mostra como verdadeira guerreira, dessas que causa pasmo
e é aplaudida de pé pelos que são vítimas de circunstâncias críticas operadas
pela dura lei da vida.
Inspirada por Omolu, combate sem trégua uma
epidemia de varíola, sem temer permanece no meio das prostitutas da pequena
cidade de Buquim. Em Salvador, mais uma vez volta à prostituição, mobiliza e
lidera uma greve das prostitutas contra a violência policial e a destruição dos
prostíbulos mais pobres. Essas e outras façanhas constroem a biografia
audaciosa de Teresa Batista, mulher guerreira, de feitos intrépidos e incomuns
na travessia da vida, de caráter forjado com a fome, peste e guerra. Na
constante estupidez cometida pela sociedade contra a mulher, valente e impetuosa. Daí se tornar no estrangeiro a bandeira de
movimento feminista.
Referências
AMADO, Jorge. Tieta do agreste, romance, Editora
Record, Rio,
1977.
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Teresa Batista Cansada de Guerra, romance, Livraria Martins Editora, São Paulo, 1972.
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro Titular da
Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris
Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.
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