Um Perfil de Coragem - II
Contei na semana passada a história do grande gesto de
coragem cívica do Adauto Lúcio Cardoso ao defender a Lei acima das
contingências políticas. Ele foi, sem dúvida nenhuma, um dos grandes
brasileiros do século passado. Era de uma retidão absoluta, que não o impediu
de fazer política com todas as qualidades - ao contrário do que se costuma dizer
para desqualificar a política e os políticos, a política não apenas pode, mas
deve ser feita, para ser legítima, com a visão dos valores éticos que pautam a
sociedade. Adauto era uma fortaleza moral, impávido, respeitado por toda a
Câmara, por todo o Congresso, por todos.
Sua vida política começou com a assinatura do Manifesto dos
Mineiros, um dos pontapés que derrubou a ditadura Vargas. Vereador na Capital,
não aceitou a decisão do Senado de impedir que a Câmara de Vereadores
analisasse os vetos do Prefeito e renunciou a seu mandato. Eleito para a Câmara
dos Deputados, logo tornou-se um dos principais membros da Banda de Música da
UDN.
Em 1966 foi eleito Presidente da Câmara. Foi a Castelo
Branco e pediu o compromisso de que não houvesse cassações: não as aceitaria.
Pouco depois da eleição de Costa e Silva, em outubro de 1966, saiu uma lista
com a cassação de quatro deputados. Adauto, que estava no Rio, voltou a
Brasília e disse que, enquanto ele ali estivesse, deputados não sofreriam
restrições de direito. 'Eu poderia lavar as mãos, como Pilatos, mas não lavaria
minha consciência.'
O Ministro da Justiça disse que a posição de Adauto de
submeter as cassações à análise da Câmara era 'um absurdo inconcebível'. Mas
Adauto ficou firme na garantia aos deputados que permaneciam na Casa. Um ato
complementar 'considerando [que] entendeu o Senhor Presidente da Câmara?'
colocou em recesso o Congresso Nacional. Adauto aguardava em sua sala desde as
4 horas da madrugada. Uma hora depois forças militares invadiram o Congresso.
Pôs-se de pé no alto da escada que dá acesso do segundo andar ao plenário da
Câmara dos Deputados. Quando o comandante da tropa chegou, ele enfrentou: 'Aqui
estou como representante do poder civil.' E o militar contestou: 'Aqui estou
como representante do poder militar.' Adauto replicou: 'Então, pela força,
entre no Congresso, mas jamais com a minha complacência ou o meu
reconhecimento.' Passado o recesso, Adauto renunciou à Presidência da Casa.
Para mostrar a grandeza de outro homem público, o Marechal
Castello Branco decidiu, já nos últimos dias de seu governo, ao vagar uma
cadeira de ministro do Supremo Tribunal Federal, indo contra todos os
'revolucionários', que estavam com o Adauto engasgado na garganta, convidá-lo
para ser ministro da Suprema Corte.
Ali no Supremo, mais uma vez, Adauto iria mostrar quem ele
era.
Durante o julgamento, em março de 1971, no Governo do
Presidente Médici, da constitucionalidade do decreto-lei 1.077/1970, que
estabelecia a obrigatoriedade de censura prévia, inclusive a livros, o Ministro
Adauto disse que, como juiz, jamais concordaria com isso. Deu, então, seu voto
pela inconstitucionalidade do decreto, afirmando que o livro era intocável, não
poderia sujeitar-se a nenhuma censura e que sua publicação deveria ser livre.
Colhidos os votos, Adauto foi vencido e o Supremo aceitou o
arquivamento da ação pelo Procurador-Geral da República, o que, na prática,
autorizou a censura.
Adauto levantou-se, tirou a toga, enrolou-a, colocou-a sobre
sua cadeira e deixou o Supremo Tribunal Federal! Jamais voltou.
Esse era Adauto Lúcio Cardoso.
Ao escrever estes episódios ainda me comovo lembrando sua
figura?
Os Divergentes, 30/01/2022
https://www.academia.org.br/artigos/um-perfil-de-coragem-ii
José Sarney - Sexto ocupante da Cadeira nº 38, eleito em 17
de julho de 1980, na sucessão de José Américo de Almeida e recebido em 6 de
novembro de 1980 pelo Acadêmico Josué Montello. Recebeu os Acadêmicos Marcos
Vinicios Vilaça e Affonso Arinos de Mello Franco.
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