Noite de março de 2010. Na posse de Maria Adelaide Amaral na Academia Paulista de Letras, vi aquela mulher deslumbrante em pé, lá atrás. Corri e abracei Mila Moreira, que me cobrou: 'Quando vai escrever minha história, me conhece tanto. Quantas vezes falamos sobre isso?'. Foi a última vez que nos vimos. Continuava a mesma mulher magra, alta, bonita, sensual: 'Acho que tenho bastante coisa do mundo da moda e da televisão. Ainda me lembro quando à tarde eu ia ao jornal, você estava escrevendo, eu ficava olhando, perguntando, achava incrível ser jornalista. Eu te dizia: ainda vou ser muita coisa. Veja só, eu tinha 15 anos'. Lembrei, anos 1960, ela era pura malícia, riso.
Acabara de ser eleita Miss Luzes da
Cidade, um concurso original criado pelo jornal Última Hora por Samuel Wainer
para conquistar o público da periferia. Cada clube ou associação de bairro
elegia sua miss. Depois, em grande festa no Clube Pinheiros, era eleita a Miss
Luzes da Cidade. Vendia jornal, ajudava os bairros a terem visibilidade e força
nas reivindicações. Mila, então Marilda Moreira, era filha de um funcionário do
Banco do Brasil. Morava em um modesto apartamento no centro, na Rua Brigadeiro
Tobias. Ela era da equipe de patinadoras da Associação Atlética Banco do
Brasil, AABB, que na época ganhava todas as competições.
No dia seguinte à eleição, fui à casa
dela fazer uma matéria de capa. Encantei-me, fomos conversando, pai e mãe
juntos, criamos um perfil. Ela era sagaz (sempre quis usar esta palavra).
Ganhou foto de página inteira, coisa rara em jornal. Às vezes, aparecia no
jornal, a redação era no Anhangabaú, a algumas quadras da casa dela. Ia de mesa
em mesa, conversava, sentava-se junto a mim na máquina de escrever, palpiteira.
Sonhei em casar com ela, um dos milhões de sonhos que viajaram pela minha
cabeça.
Acabamos amigos de uma vida. Em 1963,
descoberta por Livio Rangan, entrou para o belíssimo grupo de moda da Rhodia,
que viajou o mundo. Encontramo-nos em Roma, fomos a Spoletto, Pisa, Veneza,
Beirute, ela brilhava ao lado de Lucia Curia, Paula Peixoto, Malu, Lilian. No
grupo, Sergio Mendes e seu conjunto com o gênio Raul de Souza. Ela foi tudo na
moda, fez novelas, enfrentou preconceitos ('como? Uma modelo?'), amou muitos
homens, viveu a vida que queria viver, foi o que desejou ser. De repente, o
coração dela parou. Assim como não liguei, não visitei, não encontrei, não
jantei com amigos chegados, acrescento uma dívida em minha vida: a biografia
prometida à Mila, mito que Vi nascer e crescer.
Ela amou muitos homens, viveu a vida
que queria viver, foi o que desejou ser. E o coração parou.
O Estado de S.
Paulo, 12/12/2021
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https://www.academia.org.br/artigos/mila-sei-fiquei-devendo
Ignácio de Loyola Brandão - Décimo
ocupante da Cadeira 11 da ABL, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do
Acadêmico Helio Jaguaribe.
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