Maria Generosa
“...aquele
que dentre vós está sem pecado,
Seja o primeiro que lhe atire uma pedra”.
“É como
estou contando, moço. Às brutas, não, porque ninguém sojiga minha vontade. Mais,
porém, numa conversa bem conversada a gente topa tudo, sem receber tostão, sem
nada, que o dinheiro inté, muitas vezes, sapeca as mãos da gente. Pra quê
dinheiro, sô, quando o sujeito é bem-falante, palpitoso, que faz a gente se
derreter toda? Pra quê misturar as coisas boas que a vida dá pra gente com essa
porcaria de dinheiro, que a gente tem quando não precisa e só carece dele
quando a gente não tem? Não gosto de mangar de ninguém, não carrego soberba
comigo e nem tenho implicância com os mais. Qualquer vivente, filho de Deus,
tem resplandor nas minhas ideias mesmo que seja um tiquim só. Os bichins de
Nosso Senhor, os que não fazem mal a ninguém, inté eles todos, são coisas
do meu bem-querer. Borboleta e
passarim, pra falar só dos dois, vosmecê já prestou atenção nas bonitezas
deles? Quem é que não gosta de coisas assim? Vosmecê se ri, achando que eu sou
diferente das outras? Mais, porém, não está me debochando, né mesmo? Muitas das
tais que nem eu, que andam por aí especulando a vida dos outros, eu maldo, não
vieram ao mundo para a vida desinfeliz que Deus deu pra elas. Estragam o
ofício, sujam o nome limpo das famílias delas e querem emporcalhar as
companheiras. Caíram na vida por bestagem delas ou sem-vergonheira de homem sem
coração. Depois da primeira cabeçada atolam o corpo na sujeira. Não se dão ao
respeito, desvalorizam a classe.
Vou contar
uma coisa pra vosmecê: foi Sêo Cantídio, cometa afiançado, rapaz de muitas
letras e muitas falas bonitas – o homem mais senhor que já vi na minha vida –
quem me explicou muitas dessas coisas do mundo. A gente se embelecava com o
cujo, logo na primeira hora, sem dar fé do que estava acontecendo, sem
acreditar que se amarrava ao danado. Sêo Cantídio protegia e alteava a criatura
que andasse com ele. No fim, a gente virava escrava, só ouvindo a boniteza do
palavreado dele. Pra mostrar que a vida que a gente leva não é assim tão
condenável, contava casos acontecidos com princesas e rainhas de outras eras,
criaturas das terras dos gringos e outras da nossa terra também. De uma ensinança de invejar professoras,
mostrava, nos livros, retratos de muitas mulheres e falava de suas
sem-vergonhezas, seus feitiços, mandando e desmandando nos homens que imperavam
antigamente. Quer saber de uma coisa, moço? Umas eram bonitas, de verdade, que
nem cromos; outras, que nem nós mesmas... Vosmecê não quer tirar uma fumacinha,
aqui, no meu cigarro? Diz que faz mal, porque sofre dos peitos, é? Me desculpe.
Como estava contando: decorei o nome de muitas que estão nos livros e sei as
malucagens que elas fizeram pra dominar reis e imperadores. Me diga, agora, vosmecê:
essas criaturas, feias ou bonitas, são ou não são que nem a gente? Sêo Cantídio
me mostrou um livro, desses de capa preta, grandão, pesado, abriu ele e leu
para nós, para mim e Celestina – a Celeste, que amaridou com Sêo Zé Tertuliano,
minha amiga mais chegada – uma porção de estórias, adonde a vida e criaturas que nem eu e Celeste é inté
engrandecida. A tal Rainha de Sabá, para
exemplo, fez coisas com o rei Salomão... Bem, nem é bom se recordar. Sêo
Cantídio leu os versos que o tal Rei
escreveu, louvando pra danar o corpo dela, não foi assim? O rei explicava tudo
tão direitinho, tão bem explicado mesmo, que a gente ficava maginando, sentindo
uma gastura dos diabos remordendo dentro da gente. Inté nossos olhos ficavam
marejando...
E aquelas
estórias das “noites mil”? Vosmecê diz que estou errando no nome, que é Mil e
Uma Noites? Pois seja! Vosmecê já leu coisas mais doidas do que aquelas? E a
tal de Salomé, que mandou cortar a cabeça do santo? E as tais Lucrécia e
Messalina? Virge, que criaturas desapiedadas! E as madamas, imperadoras da
França, monarcas de Roma? E aquela danadinha lá do Egito, que deu os peitos pra
cobra morder? Já se viu?! Vosmecê não aceita mesmo um cigarrinho? Uma
tragadinha só, toma, não vai fazer tanto mal... Que nem Sêo Cantídio, lhe juro,
sem agravar os mais outros homens, nunca vi igual! Ele fez nós duas, eu e
Celeste, descobrir o valor do nosso ofício e provou que nós espanamos do mundo
as doideiras dos homens. Jurava que, sem a gente, o número de malucos seria
mais grande do que é; e que também, no meio das famílias, as desgraças seriam
mais desgraçadas do que essas desgraças que aí estão, e que a gente sabe delas
por ouvir dizer...
Acho que Sêo
Cantídio tinha razão. Quando a gente duvidava do que ele dizia, ficava assim,
do olhos pregados na nossa cara, naquele jeitão de quem sabe muito bem o que
falava. Se ria todo e perguntava, com a cara mais lavada: “Como foi, então, que
o mundo se encheu de tanta gente, se, no começo dele, era só um casal? Me
responda, anda!” É... pensando bem, ele tinha razão. Por exemplo: numa cidade
porqueira que nem esta nossa, se não fosse eu e Celeste – pra não falar de umas
quatro mais, que fazem lá os seus benefícios particulares, às escondidas – como
é, pergunto, que os homens se desapertavam, os viúvos se consolavam, os
pelancos apendiam? Me diga.
Despois que
Sêo Cantídio leu para nós o que escrivinharam nos livros, carrego minha cabeça bem
alevantada, bem nos altos. Não abaixo meu cangote pra ninguém montar nele.
Celeste, hoje, é também que nem eu. Ela já foi moça-de-padre – sabe? – No
Calhau, logo depois que ela saiu de casa. Os ignorantes boquejam que ela vira
mula-sem-cabeça, quando chega a coresma. Vira nada! Tudo inzona das bobas, que
nem á-bê-cê soletram direito. Ela morou comigo um par de anos. Nunca vi nada
que condenasse minha amiga. Ela me disse, um dia, sem remorsos naquela cara
bonita: “Que mal faz gostar a gente de padre, se eles são homens também que nem
os outros?”
Eu não rezo
na mesma cartilha, nhor não. Tenho cá pra mim que isso não é direito, não por
medo de virar mula-sem-cabeça, não. Mais, porém, porque, no mundo, tem bastante
dos outros homens desimpedidos. A gente não carece usar os proibidos, né mesmo?
Não condeno minha amiga porque ela gosta de esquisitar nosso ofício, isso não.
O que é do gosto regala a vida, diz o vulgo, e eu acho que tá certo. Para
acalmar minhas dúvidas, perguntei, uma vez, ao Doutor Minervino, o juiz de
direito – quando a dona dele andou de resguardo -, se Celeste era criminosa
porque apreciava aquilo. Ele se riu da indagação, e falou: “Não, Generosa, a
lei não fala dessas coisas; e, quando a lei não escogita – penso que ele falou
assim mesmo, es-co-gi-ta - palavra danada de difícil! – é porque o ato não é
criminoso”. E o Doutor Minervino é homem sem, porém, de muita sabença. Mioludo
que nem Sêo Cantídio. Fala por aí – as donas sem caridade no coração delas –
que a gente é de vida fácil... Vida fácil, pois sim! Bestagem delas, pura
bestagem.
Digo e
confirmo pra vosmecê: já andei nos braços de homem pobre, inté de criaturas
desvalidas, de pé no chão e camisa rasgada, mais, porém, de corpo limpo.
Vosmecê me pergunta se foi de graça? Nhor sim, de graça! Porque achei que era
caridade que eu fazia. Abraços e boquinhas de sujeitos ricos, posudos, desses
que acham que a gente, por ser uma das tais, é obrigada a aceitar qualquer um,
desses fulanos sem coração, já repeli muitos.
Sem malquerença, sem agravar os cujos, tiro o corpo fora com desculpa de
doenças, e o mais. Vosmecê, vê-se logo, não é desses, sei que não. Conheço
vosmecê de vista, em desde que aqui chegou. Não desconheço que é doutor formado
em medição de terras. A família de sua dona, conheço ela toda, porque é gente
daqui mesmo. Me contaram que vosmecê não é moço de riquezas, que nem seu sogro.
Cochicham por aí que vosmecê inté já cuspiu vermelho, por via de
doença-do-peito. Que é que a gente não sabe nesta terra pequenina? Vosmecê vai
me relevar a pergunta, que deixa a gente meio desacertada: me contaram que sua
dona tem medo de tísica, e é por isso que vosmecê vive assim, desarvorado, é
mesmo? Pois assunta, nêgo: bota sua cabeça, aqui, no meu ombro, estala as
bicotas que quiser nos cabelos, no rosto, no meu cangote. Não! Na boca, não,
por via do entojo que me dá´...”
(BAZÉ – ESTÓRIAS SERTANEJAS)
Nelson de Faria
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O escritor NELSON DE FARIA
Julgado pela crítica brasileira:
“Não conheço na moderna literatura regionalista brasileira
nada melhor do que a prosa desse mineiro. As narrativas são de um escritor plenamente
realizado na arte do conto, dramático, poético ou pitoresco, apresentando os “fatos”
e os tipos com uma segurança e um sabor que fazem o encanto da leitura.”
RAUL LIMA
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