Orlando Gomes: um jurista cronista
Cyro de Mattos
Os alunos
gostavam de dizer de boca cheia, a expressão feliz no rosto, que aquela era a
gloriosa Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. O prédio ficava
na Rua Direita da Piedade, em frente, no diminuto largo, o gesto em bronze do jurista
Teixeira de Freitas, a observar os alunos que entravam para a aula na manhã. Os
professores eram senhores de vasto saber jurídico. Uns faziam que os alunos
respeitassem aquela faculdade de tradição valorosa, outros com a sua maneira de
dizer o direito que a amassem. Entre eles, havia Orlando Gomes, professor de
Direito Civil. Era um autor respeitável no circuito nacional, à época publicara
obras de Direito Civil, que sobressaíam de sua vocação entre os talentosos
juristas baianos.
O curso de Direito Civil durava quatro anos. Para cada ano era estudada uma das
ramificações desse direito. Não havia aluno que não quisesse estudar Direito
Civil com o professor Orlando Gomes durante os quatro anos. Era uma dádiva ser
aluno daquele professor elegante, dicção objetiva, poder de síntese e densidade
atraentes. Fazia sem esforço que as aulas se tornassem sedutoras, durante o ano
ninguém pensava em faltar a uma delas, lamentando quando isso acontecia por
motivo alheio à vontade.
A razão do moço que veio do interior logo tomou conhecimento
que o Direito é uma das maiores conquistas do ser humano. Sem essa hora não
existe de fato gente humanizada, o cidadão condigno, mas o regresso na escala
biológica onde prevalece o instinto animal na prática invariável dos atos com
base na lei do mais forte.
Havia
chegado a hora do professor de Direito Civil se aposentar, guardar suas
ferramentas de ensino na gloriosa faculdade. E assim, no veraneio imposto pela
passagem da vida, viria acontecer o cronista. De crônica em crônica, publicada
no “Jornal da Bahia”, nos anos 1960 e 1970, o estilo não jurídico do autor foi
revelando um baiano bom cronista. O autor no final da sua atividade como
cronista alcançava a marca de quem havia escrito 140 textos do gênero.
Crônicas
sobre o seu amor à Bahia, a sua história, os seus velhos mestres, o Carnaval
ontem e hoje, o racismo, o futebol, a oratória decadente do bolodório, os
advogados, a Justiça e o Direito, entre tantas que fluem no estilo sóbrio. Em algumas fica claro que os homens da geração do cronista tinham dificuldades de
entender o mundo, que passava ligeiro, por mais aberto que seja o espírito,
mais ansiosa a vontade de compreendê-lo, como pasmo se dizia.
Essas crônicas foram reunidas agora no alentado volume Orlando
Gomes, o cronista. Percebe-se em algumas que o tempo passageiro é flagrado na
Bahia com seu direito de sambar, caminhar por novas ruas do mundo onde foi
introduzido o homem audiovisual modelado pela telecomunicação, formatado em seu
psiquismo, educação e relações sociais. O cronista com conhecimento de causa
toca as faces nostálgicas da velha Salvador, exibe a cidade que não mais
existia com a pura alegria de viver de sua boa gente. Ninguém mais queria
conhecer o outro por prazer.
Em “Papo de Folião Aposentado”, no tom consolador, conclui
que o carnaval de ontem já era, o corso de automóveis com famílias aplaudindo
nas calçadas não passava de evocação de cafonices. Estava convencido de que não
foi mesmo o folião aposentado que mudou ao correr da vida. O babado, em seu
cometa ululante e feérico, “atrás do qual centenas de foliões pulam por pular e
arrastam o que encontram pela frente”, é que era outro.
Lírico, observador, reflexivo, opinativo. Cronista que
recolhe os estados emotivos da vida em sociedade, extraindo das cenas
cotidianas o pretexto que resulta no texto informativo com equilíbrio e
devaneio. Cultiva a crônica com o
engenho de ensaísta, que inspirado fere com humor a mudança dos costumes,
expede juízo acerca de temas como o amor, a idade avançada como virtude
acumulada de saber, o preconceito contra as mulheres, a euforia das domésticas,
a utilidade das novelas de televisão, as drogas e a violência. Crônicas para
todos os gostos como resultado de uma experiência de vida bem vivida.
À sombra das lembranças que acendem o pensamento emotivo, às
vezes revelam a maneira apropriada para
se regressar ao passado, reconstruindo-o com pedaços felizes, momentos
generosos da cidade de beleza antiga na canção da vida. Com uma conversa simples,
pedem atenção para o perene das coisas, pessoas, costumes, situações, logrando
trazer para as páginas do livro agora a notícia efêmera que pertence ao
jornal.
O cronista tem uma visão tranquila de ver o mundo.
Distingue-se na escritura que prefere recriar com emoção e razão situações ao
invés de recorrer à mera transcrição dos fatos. Assim, ainda que tardio, fez
descansar o jurista de saber e ensino notáveis.
Gosta de se apresentar com humor, diverge quando a cena se lhe mostra
inconsequente, mas sempre querendo conversar com o mundo, de maneira lúcida,
serena, numa condição que lhe é necessária, faz parte de seu caráter revestido
das essências da vida. Isso certamente fará com que o leitor comente que em bom
momento não ficou o veranista esquecido dentro do jurista.
*Orlando Gomes, o cronista, 140 crônicas de Orlando Gomes,
prefácio por Otávio Luiz Rodrigues Jr., organizador Rodrigo Moraes, EDUFBA,
editora da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021.
**Cyro de Mattos é ficcionista, poeta, ensaísta, cronista,
autor de literatura infantojuvenil. Editado e premiado também no exterior.
Autor de 55 livros pessoais. Membro da Academia de Letras da Bahia, foi aluno
do professor Orlando Gomes, que ocupou a cadeira 16 da instituição.
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