Meu pai ao voltar do escritório comunicou: 'Este mês vocês irão comigo para São Paulo'. De tempos em tempos ele participava na capital de uma reunião com chefes de Contadoria das ferrovias brasileiras. O aviso era recebido com alvoroço por mim e meu irmão Luis Gonzaga. Aquela era uma viagem encantada. Só quem nasceu no interior viveu a experiência arrepiante de chegar de trem na Estação da Luz, passando por baixo da rede de fios elétricos de uma super aranha acima de nossas cabeças. Havia a expectativa na capital de outra viagem dentro da viagem. Pegar o bonde Penha-Lapa, ida e volta, o que nos ocupava meia-tarde atravessando a cidade.
As reuniões dos chefes eram na Estação da Sorocabana, e Luis
e eu ficávamos em um jardim interno à espera até o final, quando meu pai nos
apanhava para almoçar no Hotel das Bandeiras, ou do Giuseppino, na Rua da
Conceição. O prediozinho foi sacrificado pelo metrô. Ah, aquele jardim hoje é a
Sala São Paulo. No restaurante, sentávamos e começava o desfile de
travessinhas, uma com ovo, outras com bife, linguiça, abobrinha, berinjela, jiló,
chuchu, ervilhas, couve, saladinha, arroz, feijão, macarrão. Também
visitaríamos a Catedral da Sé em construção, e eu achava inacreditável ver um
bonde que entrava na igreja com material de construção.
Maravilha das maravilhas sempre foi o anúncio luminoso de um
café (seria o Paraventi?), em cima do prédio da Light, vizinho ao Mappin. Em
uma animação (pensem, eram os anos 1940), o bule se inclinava e derramava o
líquido na xícara. Para mim, havia um mistério. Por que as lojas mantinham
luzes acesas durante o dia? No interior, luzes só eram acesas depois de seis da
tarde. Isso significava o que era para mim a cidade grande, luzes acesas
durante o dia.
Mas São Paulo era a cidade dos prédios, dos arranha-céus.
Araraquara não tinha ainda nenhum. Meu pai, Luis e eu nos instalávamos na
calçada, do outro lado da rua, a contemplar elevadores de madeira periclitantes
que subiam e desciam, levando carrinhos com pedras, concreto, cal, tijolos.
Víamos pedreiros se equilibrando nos andaimes sem nenhum medo. Homens dos ares,
dizíamos arrepiados. Os prédios subiam lentos, muitas vezes ao voltarmos, meses
depois, eles tinham crescido pouco. Para tudo há um ritmo, dizia seu Totó, não
adianta ter pressa ou o prédio cai. Não existiam ainda os caminhões de concreto
com betoneiras girando, girando. Assim se constrói uma grande cidade, murmurava
meu pai, aquilo era progresso.
Em 1957 vim morar aqui. Os prédios subiam velozes. O
encantamento continuava, havia cinemas, teatros, livrarias, eu trabalhava em
jornal, tinha um único medo, ser demitido, mas se você perdia a vaga, em uma
semana estava empregado de novo. Agora, não tenho mais medo de demissões, me
demiti, aposentei, e trabalho mais do que antes. Continuei fascinado pelas
construções, cada vez mais velozes. Um dia era um buraco, vinha o bate-estacas
ruidoso, pram, bum, tcham, tchum, logo anunciavam o apartamento decorado,
abriam o showroom. Piscou um dia, no dia seguinte edifício pronto. Passei por
muitas fases da história da construção. Agora chegamos aos tempos de aceleração
total. Um tapume, um buraco, um andar hoje, outro amanhã, no final da semana
tem mais não sei quantos caminhões de todos os tipos. Concreteiras mandam o
cimento armado por tubos a alturas inacreditáveis.
Porém, há um mistério indecifrável. Pensem bem. Vejam se não
tenho razão. A revolução industrial avançou, veio a tecnologia de ponta, a
informática, o celular, o computador, os robôs, a descoberta do DNA, implantes
substituem as dentaduras, transplantamse corações, fígados, rins, um dia
transplantarão almas. O homem foi à lua, a Marte, os trens (europeus, claro)
correm a 500 por hora, usa-se a energia solar, criaram-se os games, a internet,
o Twitter, a revolução digital, as fake news, os caminhões gigantescos, os
treminhões, o radar, o laser, a corrupção.
No entanto, quem me explica, esclarece, justifica, encontra
uma única razão para a existência dos bateestacas ruidosos como tiros de canhão
que continuam a nos atormentar desde 7 da manhã? A cada pancada, vibram os
edifícios todos em volta. Há silenciadores de armas, mas não se criou um para o
bate-estacas. De Newton a Darwin, de Niels Bohr a Pauling, de Einstein a
Fleming a Osvaldo Cruz, de Madame Curie e Steve Jobs, de Salk a Mendel, sempre
tivemos pessoas querendo o bem-estar da humanidade. Mas nenhum se colocou
frente a esse tormento primitivo, rompedor de tímpanos e mentes. Mistérios.
Só quem nasceu no interior viveu a experiência arrepiante de
chegar de trem na Estação da Luz.
O Estado de S. Paulo, 30/07/2021
https://www.academia.org.br/artigos/o-invencivel-bate-estacas
....................
Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11 da
ABL, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário