A matemática perde um grande poeta. E quanto a mim, perdi um mestre e um amigo. Ubiratan d'Ambrosio (falecido a 12 de maio, aos 88 anos, em S. Paulo, de onde era natural) fundou uma nova antropologia da matemática e uma forma inovadora de ensiná-la. Mestre de águas claras, Paulo Freire era seu irmão de liberdade. E declarou que a paz era também função de número e proporção. A etnomatemática deve-lhe a fundação, a forma de aprofundar-se, uma rede conceitual.
Volto às suas memórias híbridas, sem narrador onisciente,
inclinado à ficção da matéria rediviva. Várias formas de entrar e sair. Um tesouro
de testemunhos, e felizes redundâncias, como um discurso musical, quando o
mesmo episódio é revisitado com variações. Memórias que ostentam uma saudável
dispersão, aparentes disjecta membra. Cabe ao leitor a tarefa dos fios da
narrativa, que acercam a matemática no Mali e no Brasil, as atividades
docentes, as não poucas missões entre organismos internacionais e escolas em
áreas vulneráveis. E sobretudo a defesa de novas epistemologias, enucleadas no
viés transcultural e no recorte transdisciplinar, que formam a digital de
Ubitatan.
Emociona a evocação de Salomon Marcus, nosso amigo comum,
professor que transitou vida afora entre a poesia e a matemática, discípulo,
como foi, do grande poeta matemático Ion Barbu. Não são dois mundos, o das
ciências exatas (depois de Gödel temos de mudar o tom) e o das ciências
humanas. Nada além do mundo cultural, desde um generoso senso de unidade. Esse
é também o espírito sensível de Ubiratan. Tenho uma dívida com ele, por haver
apaziguado minha relação, outrora nada simples, com as matemáticas. Voltei para
essa casa, de números e padrões, como o filho pródigo, através de seus livros,
mediante suas palavras audazes.
A etnomatemática é um divisor de águas no campo dos saberes,
que tangencia a hermenêutica e a história da matemática, rasgando novas
fronteiras. E me levou-me a pensar, de modo mais estruturado, em uma poética da
matemática. Como se o fio de Novalis não se houvesse peridod, assim como a
lição de Leonardo, que vibra além das disciplinas e não se fecha em dimensões
burocráticas, Ubiratan me conquistou pelo seu juízo severo do ensino da
matemática, segundo um cardápio de sugestões fascinante.
Mas é a proposta de uma cultura da paz que se afirma, a
cultura, onde seguimos todos implicados, nas escritas da periferia e do sistema
prisional. Ubiratan acertou em cheio. O ensino da matemática traduz parte do
ideal possível de uma paz perpétua, ou de uma ética em trânsito que sonha com
uma parcela de beleza e liberdade.
Jornal de Letras, Artes e Ideias (Lisboa), 19/05/2021
https://www.academia.org.br/artigos/um-poeta-da-matematica
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Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL,
eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila, foi
recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha. Foi eleito
Presidente da ABL para o exercício de 2018.
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