14 de agosto de 2020
Padre David Francisquini
Pergunta — Durante a pandemia do coronavírus, fiéis de
vários países pediram a seus episcopados que renovassem a consagração de suas
nações a Nossa Senhora, a fim de obter a sua benevolência e o fim da pandemia.
Chamou-me a atenção que os bispos da Itália e de Portugal, nos respectivos atos
litúrgicos que realizaram para atender a esse pedido, reservaram a palavra “consagração”
exclusivamente a Jesus. No que se refere a Maria, empregaram em Fátima o termo
“entrega”; e “no santuário italiano de Caravaggio, “affidamento”, que quer
dizer a mesma coisa. Achei isso estranho, já que Nossa Senhora em Fátima pediu
a “consagração” da Rússia (não apenas a “entrega”) ao Imaculado Coração de
Maria. Se a Rússia pode ser consagrada à nossa Mãe do Céu, por que não Portugal
ou Itália, quanto mais em uma emergência tão grave como esta?
Resposta — Essa reticência dos prelados e dos teólogos
em empregar o termo “consagração” em relação a Nossa Senhora vem desde o tempo
anterior ao Concílio Vaticano II, sob pretexto de que “uma consagração
propriamente dita não se faz senão a uma Pessoa divina, pois a consagração é um
ato de latria, cujo termo final apenas pode ser Deus”, como escreveu
o jesuíta Pe. Juan Alfaro.[1]
De fato, em sentido estrito, a consagração é o ato pelo qual
uma coisa é transferida de um uso comum e profano para um uso sagrado; ou o ato
pelo qual uma pessoa ou coisa é dedicada ao serviço e ao culto de Deus por meio
de orações, ritos e cerimônias. Assim, fala-se da consagração de uma igreja, de
um altar ou de um bispo. O conceito tem um aspecto positivo, o de pertencer
total e exclusivamente a Deus. E um aspecto negativo, que é o de subtrair o uso
profano.
Ao longo dos séculos a Igreja não hesitou em empregar a
palavra “consagração” para exprimir o dom e a oferenda que uma pessoa, um grupo
humano ou uma região fazem de si a uma criatura de Deus, como Nossa Senhora, a
Igreja ou uma Ordem religiosa, como um meio para melhor servir ao próprio Deus.
Até na linguagem comum se utiliza esse termo para exprimir uma dedicação total.
Por exemplo, quando dizemos que uma pessoa se consagrou a uma causa ou a um
trabalho.
Como é isso possível, se somente Deus, Criador e Senhor de
tudo quanto existe, tem direito à pertença (domínio) total e exclusiva de suas
criaturas? A resposta é que se trata aí da aplicação deste princípio conhecido:
quando se diz algo de Deus, a referência é em sentido próprio; quando se diz o
mesmo de uma criatura, o sentido é apenas analógico.
O protestantismo é contrário à vassalagem a Nossa Senhora
Na Basílica de São Pedro, imagem de São Luís Maria Grignion de Montfort
Já no século IV a noção de pertencer a Nossa Senhora aparece nos escritos de Santo Efrem, o Siríaco; e no século seguinte, uma “santa servidão” a Ela, pela qual os que a praticavam eram chamados “servos de Maria”. No século VII, provavelmente em 626, depois do cerco dos ávaros e dos persas, a cidade de Constantinopla exprimiu no hino Akathistos sua pertença Àquela que os tinha salvo: “A Vós, capitã e defesa, canções de vitória e de gratidão. Mãe de Deus, eu consagro vossa cidade, libertada de ameaças horríveis”. Santo Ildefonso de Toledo (+667) difundiu a ideia da consagração a Nossa Senhora, ou mais precisamente “da dedicação plena ao seu serviço”.
No século VIII, São João Damasceno elaborou ainda mais o
tema da consagração a Maria. Numa passagem de seu sermão sobre a dormição,
escreveu: “A Vós consagramos nossas mentes, nossas almas e nossos corpos –
em uma palavra, todo nosso ser”. Empregou sem hesitar o verbo grego anathemeni,
que significa reservar para uso sagrado, configurar como presente votivo,
dedicar, separar.
Na sociedade feudal da Idade Média, não causava nenhuma
estranheza a ideia da dedicação total a um senhor feudal inferior. A sociedade
era então baseada sobre um sistema de vassalagens sucessivas, pelo qual o
senhor de um vassalo era, por sua vez, vassalo de um senhor mais alto, até
chegar ao rei. E todos compreendiam que, se cada vassalo em seu respectivo
nível servisse bem ao seu senhor, o maior beneficiário final dessas dedicações
era o soberano.
Assim, a ideia da consagração a Deus por meio de Maria
entrou muito fundo na espiritualidade de muitos santos, de várias Ordens,
congregações e do próprio povo. O conceito de vassalagem a Nossa Senhora só foi
questionado pela revolução protestante, com a orgulhosa pretensão de que cada
batizado estabeleça uma relação direta com Deus, sem nenhuma intermediação da
Igreja, de seus sacramentos e de seu magistério. O pretexto para isso é que tal
vassalagem afastaria de Cristo, único Mediador.
O Cardeal Pierre de Bérulle (+1629), fundador da chamada
“escola francesa” de espiritualidade, impôs à Congregação do Oratório e aos
carmelitas o voto de servidão a Maria. Levantou-se então grande ofensiva de
libelos anônimos motivados pelo jansenismo, que era uma versão moderada dos
erros protestantes. O voto de escravidão proposto pelo Cardeal de Bérulle foi
condenado pelas universidades de Louvain e Douai.
Consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria
No Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem,
São Luís Maria Grignion de Montfort fundamenta de modo irrefutável que a
escravidão a Maria é o meio mais rápido, fácil e seguro de se conformar a Jesus
Cristo. Para evitar uma condenação semelhante à do Cardeal de Bérulle, o grande
santo mariano tomou o cuidado de intitular sua fórmula de escravidão
mariana “Ato de consagração a Jesus Cristo, a Sabedoria Encarnada, pelas
mãos de Maria”. A descoberta desse livro em meados do século XIX fez com que a
Mariologia se desenvolvesse resolutamente nos meios teológicos, e que dezenas
de milhares de fiéis fizessem sua consagração a Nossa Senhora nos termos
propostos por São Luís de Montfort.
Esse movimento de entusiasmo por parte dos escravos de amor
da Santíssima Virgem foi indiretamente convalidado pelas aparições de Nossa
Senhora em Fátima, nas quais Ela disse que viria solicitar a consagração da
Rússia ao seu Imaculado Coração, a ser realizada pelo Papa em união com todos
os bispos do mundo.
No dia 31 de outubro de 1942, num momento crítico da Segunda
Guerra Mundial, o Papa Pio XII, numa Radiomensagem aos fiéis portugueses, fez
um ato de consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria, nos seguintes
termos: “A Vós, ao vosso Coração Imaculado, nesta hora trágica da história
humana, confiamos, entregamos, consagramos não só a Santa Igreja, corpo místico
de vosso Jesus, que pena e sangra em tantas partes e por tantos modos
atribulada, mas também todo o mundo, dilacerado por mortíferas discórdias,
abrasado em incêndios de ódio, vítima de suas próprias iniquidades”. Um pouco
adiante o Papa fez uma analogia entre seu ato e aquele de seu predecessor Leão
XIII: “Como ao Coração do vosso Jesus foram consagrados a Igreja e todo o
gênero humano, […] assim desde hoje Vos sejam perpetuamente consagrados também
a Vós e ao vosso Coração Imaculado, ó Mãe nossa e Rainha do mundo”.
Honrando a Santíssima Virgem, honra-se Jesus Cristo
Papa Pio XII
Dez anos mais tarde, em julho de 1952, o mesmo Pio XII,
atendendo às instantes súplicas recebidas do mundo inteiro, declarou
solenemente na Carta Apostólica Sacro Vergente Anno: “Tal como há
alguns anos Nós consagramos todo o gênero humano ao Coração Imaculado de Maria,
Mãe de Deus, hoje consagramos e confiamos todos os povos da Rússia a este
Imaculado Coração”.
Durante sua visita a Fátima, no cinquentenário das
aparições, Paulo VI publicou a exortação Signum Magnum,na qual encorajou
todos os filhos da Igreja “a renovar sua consagração ao Imaculado Coração
de Maria”. No sermão que fez em Fátima no dia 13 de maio de 1982, João Paulo II
declarou: “Consagrar o mundo ao Coração Imaculado de Maria significa
aproximar-nos, mediante a intercessão da Mãe, da própria Fonte da Vida, nascida
no Gólgota. […] Consagrar o mundo ao Imaculado Coração da Mãe significa voltar
de novo junto da Cruz do Filho. Mais quer dizer, ainda: consagrar este mundo ao
Coração transpassado do Salvador, reconduzindo-o à própria fonte da Redenção”.
Em 25 de março de 1984, diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima, levada a
Roma para a ocasião, João Paulo II proclamou: “Abraçai, com o amor da Mãe
e Serva do Senhor, este nosso mundo humano, que Vos confiamos e consagramos,
cheios de inquietude pela sorte terrena e eterna dos homens e dos povos. De
modo especial Vos entregamos e consagramos aqueles homens e aquelas nações que
desta entrega e desta consagração têm particularmente necessidade”.
Não obstante essa utilização pelos Papas da expressão
“consagração”, em ocasiões solenes, para referir-se à entrega do mundo a Maria
ou ao seu Imaculado Coração, nos ambientes progressistas o emprego dessa
expressão é asperamente contestado, em nome dos princípios do Concílio Vaticano
II. Para os prelados e os teólogos dessa corrente, a inserção da Igreja no
mundo leva a uma minoração do sagrado e da ideia de consagração, enquanto
implicando uma separação do mundo, em lugar de uma presença e comunhão
fraternas junto a ele. Além do mais, a redescoberta da consagração fundamental
a Deus, no batismo, tornaria supérfluas quaisquer outras consagrações ou
devoções. E alegam finalmente que um maior rigor na linguagem teológica
desaconselharia aplicar o mesmo vocábulo para se referir à entrega a Deus e a
Maria.
No peito da imagem, o medalhão com as belas palavras: “Consagração da Paróquia d’Ars a Maria concebida sem pecado, feita em maio de 1836 pelo Pe. João Maria Vianney, o cura d’Ars”. [Foto: Frederico Viotti]
Essas críticas fazem lembrar aquilo que São Luís Grignion de Montfort diz a respeito dos devotos escrupulosos: “São pessoas que têm receio de desonrar o Filho ao honrar a Mãe, de rebaixar o primeiro ao elevar a segunda. Eles conseguem suportar que se deem à Santa Virgem louvores muito justos, como lhe deram os santos Padres; eles não suportam senão com dificuldade que haja mais gente de joelhos diante de um altar da Santa Virgem do que diante do Santíssimo Sacramento, como se um fosse contrário ao outro; como se aqueles que rezam à Santa Virgem não rezassem a Jesus Cristo! […] Trata-se de uma perigosa e sutil armadilha do maligno, com a desculpa de promover um bem maior; pois jamais se honra mais a Jesus Cristo do que quando se honra a Santíssima Virgem, porquanto não se honra a Mãe a não ser com a finalidade de honrar mais perfeitamente o Filho, pois só se vai a Ela como sendo o caminho para encontrar o termo aonde se vai, que é Jesus Cristo”.
A conclusão do santo é de que a melhor forma de devoção a
Nossa Senhora é consagrar-se a Ela como escravo, pois “esta Consagração é
feita conjuntamente à Santíssima Virgem e a Jesus Cristo: à Santíssima Virgem
como ao meio perfeito que Jesus Cristo escolheu para se unir a nós e nos unir a
Ele; a Nosso Senhor como ao nosso fim último, a quem devemos tudo o que somos,
como a nosso Redentor e nosso Deus. Com esta devoção damos a Jesus Cristo tudo
o que lhe podemos dar, e da maneira mais perfeita, porque o fazemos pelas
próprias mãos de Maria”.
Pelo exposto, compreende-se que é totalmente infundado, e
contrário ao ensino constante do Magistério e dos santos, o receio dos bispos
italianos e portugueses de empregar o termo “consagração” no ato de confiar
seus países e seus povos a Nossa Senhora, pedindo sua proteção na atual
epidemia.
Não duvidamos em afirmar que essa frieza de altos prelados
em relação à sua Mãe é o espinho mais doloroso que fere o Sagrado Coração de
seu Filho. Ofereçamos a Ele, em reparação, nossa mais terna devoção a Nossa
Senhora e nossa consagração a Ela, de preferência segundo o método de São Luís
Maria Grignion de Montfort.
[1] “Il
cristocentrismo della consacrazione a Maria nella congregazione
mariana”, Stella mattutina, Roma, 1962, p. 21.
https://www.abim.inf.br/por-que-se-tem-empregado-o-termo-entrega-em-vez-de-consagracao/
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