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quarta-feira, 21 de outubro de 2020

UMA BONECA LOURA - Ariston Caldas

Uma boneca loura

(Ariston Caldas)

 

            Era véspera de Natal, chegou em frente a uma vitrine e fascinou-se com uma boneca loura em exposição, de olhos verdes, vestido azul celeste, sapatinhos prateados. Se tivesse dinheiro, a compraria para Verinha, a filha mais nova. “Para presente?”, perguntaria a balconista. “Sim, quero o papel mais bonito que você tiver”, responderia ele, entusiasmado, como se estivesse vendo a caixa com a boneca, num papel bonito, cruzada com uma fitinha vermelha, um adesivo em forma de coração. Chegou a sentir a emoção da menina recebendo o presente.

            Enquanto vislumbrava essas coisas, não tirava os olhos da boneca que parecia gente viva, cabelo dourado cheios de reflexos, uma etiqueta com o preço – 40 Reais. Uma dinheirama para ele. Se fosse trapaceiro e estivesse sozinho, a rua deserta, sem nenhuma pessoa passando, poderia, num lance rápido, apanhar a boneca, saindo depois rua afora, a boneca em baixo do braço, a polícia atrás, pessoas gritando: “Ladrão, ladrão!”. Sentiu um calafrio, mudou de pensamento, mas continuou de olho duro para a boneca de cabelo louro em cachos. Em todo caso, havia conseguido o medicamento para a filha, há três dias queimando de febre. Apalpou a caixa do remédio num bolso traseiro da calça. “Doutor Renato é um sujeito humanitário”, pensou. Na mesma vitrine havia um macaquinho peludo, cor-de-chocolate, de olhos miúdos, bem mais barato que a boneca de sapatinhos prateados.

            Que adiantava o preço menor do macaco se ele se encontrava sem um centavo? Além disso, a filha teria preferência indiscutível pela boneca de olhos verdes, nem tinha dúvidas. Assim, se tivesse que apanhar escondido, seria a boneca.

            Olhou para trás, quase assustado, dois soldados de polícia passavam emparelhados, sisudos, calados, lembrou novamente de Verinha ardendo em febre, o remédio no bolso da calça. Saiu apressado. A momento esquecera a boneca, os dois soldados.

            Pela frente, a avenida extensa, iluminada, cheia de vitrinas enfeitadas, árvores de Natal artificiais entremeadas de lâmpadas multicolores, gente passando com sacolas, com pacotes bem-feitos, atados com fitas, certamente levando muitas bonecas louras, macaquinhos marrons mais baratos, de olhos redondos. “Trouxe meu presente?”. Tinha certeza de que Verinha lhe perguntaria assim, quando ele chegasse, sentada num banquinho de madeira, ao lado da cama, embrulhada numa coberta de tacos. “Quando eu ia comprar uma boneca, um grupo de ladrões roubou meu dinheiro”, ele responderia assim, constrangido por mentir e por não haver levado um presente para a filha. Olharia para ela que não iria entender a explicação, tornando-se mais triste, a carinha aureolada pela coberta de tacos. Agora, muita gente passando apressada, buzinas de carros, sinos badalando e a noite cheia de estrelas. A boneca loura continuaria na vitrine? Ou já teria sido vendida? Se não, estaria exposta, de olhos verdes, sapatos prateados. Não tinha nem um tostão, só uma caixa de remédio num bolso da calça. Lembrava do doutor Renato: “Um comprimido pela manhã e outro á noite”. Dois soldados de polícia passando sisudos, um macaquinho peludo bem mais barato, pessoas gritando: “Ladrão, ladrão!”.

            E foi caminhando, ideias difusas chegando e sumindo, arrodeado de sombras, badaladas de sinos anunciando a missa do galo. Aumentou os passos, chegou em casa, bateu na porta assustado. “Como está Verinha? Eu trouxe o remédio”, falou para a mulher, voz meio embargada. “Parece que a febre baixou um pouco. Ela tomou um chá e agora está dormindo”, disse-lhe a mulher ajeitando a popa do cabelo, entrando para o quarto onde a menina se encontrava com febre.


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Ariston Caldas nasceu em Inhambupe, norte da Bahia, em 15 de dezembro de 1923. Ainda menino, veio para o Sul do estado, primeiro Uruçuca, depois Itabuna. Em 1970 se mudou para Salvador onde residiu por 12 anos. Jornalista de profissão, Ariston trabalhou nos jornais A Tarde, Tribuna da Bahia e Jornal da Bahia e fundou o periódico Terra Nossa, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia; em Itabuna foi redator da Folha do Cacau, Tribuna do Cacau, Diário de Itabuna, dentre outros. Foi também diretor da Rádio Jornal.

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