11 de outubro de 2020
Péricles Capanema
Em 14 de novembro de 2018 divulguei artigo intitulado “Hora de observar o panorama”. Era momento de analisar o que vinha pela frente no País, ponderar possibilidades, alimentar esperanças e, em especial, evitar ilusões. Jair Bolsonaro eleito formava o governo, três semanas depois do segundo turno.
O antipetismo que determinou a eleição de Jair Bolsonaro
abriga em seu bojo variadas correntes. Alguns exemplos em fieira. Ali se
destaca o conservador em matéria de costumes, porém apático em relação à
economia muito estatizada. Boa parte constituída de gente simples, representa
enorme força eleitoral. Existe o liberal [privatista] em economia, libertário
nos costumes, comum nos setores letrados. A ele em geral impacta pouco a
ideologia do gênero, a generalização do aborto, o “casamento” entre pessoas do
mesmo sexo, a agenda LGBT. Temos o homem de hábitos antissocialistas, mas que
admite sociedade nivelada para seus netos ou bisnetos. São influentes setores
organizados da burocracia estatal, que com certeza espernearão quando da aprovação
das reformas que ora se anunciam. A lista é maior, muita gente ficou de fora.
No verso da moeda, um gigantesco contingente popular, de
hábitos e até princípios conservadores, pouco instruído, votou em Fernando
Haddad por temer a perda de apoios assistenciais, caso vencesse Bolsonaro. Com
propostas e trabalho inteligente, pode mudar o voto. Se a economia andar bem, a
frente eleitoral que elegeu Bolsonaro tem condições de se manter sem fissuras
destrutivas. Caso marche mal (e aqui pode influir muito a situação
internacional, sobre a qual nada podemos), tal frente corre risco de
desagregação rápida. Paro por aqui. Quem avisa, amigo é.
No Natal de 1971, 26 de dezembro, o Prof. Plinio Corrêa de
Oliveira publicou na “Folha de S. Paulo” artigo intitulado “Luz, o grande
presente”. Dirigia-se a todos os autênticos homens de boa vontade para que
vigiassem nas trevas da situação e, como os pastores, refletissem e esperassem.
Na presente escuridão, espero que o artigo, bico de lamparina, possa para
alguns leitores ser um presente (um pouco de luz) e assim facilite a subida em
elevações para observar o panorama. Depois, passos para frente no rumo certo.
Agir com desídia trará retrocessos, a perda do que foi conquistado com enorme
esforço.
Vou fazer o mesmo agora; estamos, de novo em situação de
encruzilhada, de perplexidades, hora de observar o panorama, no qual tanta
gente, eu também, vê nuvens negras; claro; não só cumulonimbus; existem
algumas do tipo cumulus.
O conservador espancado.
Primeiro, passarei o olhar rapidamente
por partes do horizonte e depois me fixarei em um só assunto: “o conservador em
matéria de costumes, […] gente simples, representa enorme força eleitoral”. É o
foco de hoje, o conservador de costumes, homem simples, religioso. Lembro o que
disse acima, se a economia andasse bem, a frente que elegeu Bolsonaro poderia
permanecer unida. Se andasse mal, viriam fissuras e desagregação. Vieram,
explodiu a frente, a economia está em frangalhos. E sentem-se espancados os
conservadores em matéria de costumes. Abaixo, vou falar a respeito.
O enigma da 2ª turma.
Antes, partes preocupantes do
horizonte. O pessoal conservador tremeu nas bases com a indicação do
desembargador Kássio Nunes Marques para a vaga aberta no STF pela aposentadoria
do ministro Celso de Mello. Ele substituirá o decano do STF na 2ª turma que,
parece, passará a ser constituída pelos ministros Cármen Lúcia, Edson Fachin,
Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Kássio Nunes. Por esta turma passarão
matérias importantes, agora um tanto esvaziadas pela votação oportuna
determinada pelo ministro Luiz Fux, que fez com que voltassem para a decisão do
plenário da corte inquéritos e ações penais antes submetidos ao crivo em geral
complacente da dupla Gilmar Mendes-Ricardo Lewandowski. Um terceiro voto constituiria
maioria vencedora. E se temia, pela publicação na imprensa de indícios
preocupantes, que a dupla Gilmar Mendes-Ricardo Lewandowski se transformasse em
repetidas ocasiões numa trinca, pela adesão do novo ministro, Kássio Marques.
Temos um enigma agora; poderá virar pesadelo; poderá também se dissolver. O
tempo dirá.
Esfriamento de Washington. Aproximação com Pequim?
Vamos adiante. Segundo as pesquisas divulgadas pela mídia, a vitória de Joe
Biden na eleição norte-americana parece segura, com previsível esfriamento das
relações entre Brasília e Washington e fortalecimento dos laços entre Pequim e
Brasília como contrapartida. E aí, noto de passagem, os setores nacionalistas
que hoje emperram as privatizações, empilhando entre outras alegações que não
podemos entregar blocos estratégicos ao capital internacional (sobretudo
norte-americano), suspeito, vão silenciar, quando estatais chinesas começarem
(começarem, não; continuarem) a abocanhar partes da infraestrutura nacional.
Tal caminhada, a lógica nos empurra para lá, tem um destino final ainda oculto
nas sombras de um futuro mal disfarçado, é o Brasil passar à condição
inconfessada de protetorado, se nossa diplomacia agir com inépcia e/ou traição
aos verdadeiros interesses nacionais.
Surto de chavismo.
O site “O Antagonista” transcreveu
opiniões do Sr. Kássio Nunes Marques sobre a situação venezuelana. Segundo suas
surpreendentes reflexões, chamemo-las assim, não parecem infelicitar a
simpática nação nortenha as delirantes experiências do “socialismo do século
XXI”, impostas tiranicamente por Chávez e Maduro, mas tão-somente as quedas dos
preços do petróleo. É, aliás, o despautério divulgado com descoco pelos
maiorais petistas. Kássio Nunes Marques afivela nele suas convicções: a baixa
do preço do barril do petróleo levou a Venezuela a “níveis de decréscimo
econômico jamais vistos”. Constato cm tristeza, o douto magistrado desembesta
na mesma bernardice: “Isso se refletiu da economia para a política e da
política para as questões humanitárias”. E parte para fantasias sem
amarras — relevem o português e a lógica: “Com a alta do barril, a
Venezuela experimentou níveis de prosperidade jamais vistos. Houve uma política
de transferência e distribuição de renda, uma infraestrutura do setor de saúde
e educação”.
Ampliação dos casos de aborto legal.
Chego, por fim, ao que
é mais momentoso, coloco-o em destaque; tratei dele pela rama acima: “o
conservador em matéria de costumes, […] gente simples, representa enorme força
eleitoral”. A deputada mais votada no Brasil, Janaína Paschoal (2.060.780
votos), que foi cotada para vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro,
prestigiada professora de Direito na USP, escreveu com autoridade que, pelo que
está defendido na tese de mestrado do Sr. Kássio Nunes Marques, poderemos em
futuro próximo amargar no Supremo sucessivos votos favoráveis à ampliação do
aborto, como decorrência da sustentação da “interrupção da gravidez” como
direito da mulher.
Vejamos o que afirma a professora Janaína Paschoal: “Acabo
de ler a Dissertação de mestrado do desembargador Kássio Nunes Marques. […] Um
ponto me preocupou. O […] candidato, citando Dworkin, diz que o Judiciário pode
ser acionado para fazer frente à maioria conservadora. Ilustra com o caso do
aborto. [NB O Judiciário impõe legalmente o aborto contra o desejo da
maioria popular conservadora]. […] O magistrado traz como exemplo justamente o
caso Roe v. Wade, aduzindo que o direito ao aborto foi garantido nos EUA.
[…] Conheço bem a ideia de que aborto é apenas questão de saúde da mulher. […] Não
esperava encontrar tal posicionamento em jurista indicado por Presidente eleito
como conservador! […] Como eu, a esmagadora maioria dos eleitores de Bolsonaro
é contrária à legalização do aborto, defendida pelo PSOL. Justamente a maioria
‘conservadora’, que o Judiciário não deve ouvir, conforme Dworkin, citado por
Dr. Kassio Nunes Marques, sem nenhuma ressalva. […] Os eleitores de Bolsonaro
não votaram nele para ter decisões típicas de um governo Haddad!”
Volto ao tema. A nomeação do desembargador Kássio Nunes
Marques para o STF, se ele lá votar consoante as opiniões que cita sem reserva
em sua tese de mestrado, seus votos eventualmente contribuirão para formar
maioria a favor da ampliação dos casos de aborto permitidos no Brasil. O povo
não os quer? Pouco importará, o Judiciário os imporá por via judicial,
tornar-se-ão leis. É retrocesso civilizatório, temor da Profª Janaína Paschoal.
Tal involução democrática constituirá bofetada no que intitulei “conservador em
matéria de costumes, […] gente simples, que representa enorme força eleitoral”.
Espero que não aconteça, rezo para que não aconteça, mas compartilho o receio
da deputada Janaína Paschoal. Em suma, meu maior anseio é estar inteiramente
errado em meus receios aqui expressos.
Por fim, o que tem a dizer a respeito neste momento crucial
a CNBB, que tem manifestado posição contrária à ampliação do aborto no Brasil?
Não irá, em defesa da vida, reclamar esclarecimentos inequívocos ao
desembargador Kássio Nunes Marques, ao Senado e ao Executivo? Ou se esconderá
no silêncio nesta questão central para nosso futuro de nação cristã? Silêncio
envergonhado, pensarão muitos. Fuga do dever, pensarão outros. Um forte brado
de zelo pastoral da entidade dissiparia nuvens negras se adensando no
horizonte. De tais nuvens negras sobre nós despencarão, por décadas e décadas,
chuvas ácidas.
* * *
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