Na quaresma, quando eu era menino, duas figuras esquisitas apavoravam meu juízo: o lobisomem e a Mula-de-padre. Minha mãe cobria os espelhos com panos escuros, a máquina de costura, as vidraças, os quadros pelas paredes e as imagens dos santos. Era uma manifestação de fé e pesar pelo sofrimento de Jesus, da Virgem Santíssima.
As estórias fantásticas repetiam-se de boca em boca, as pessoas religiosas impunham penitências rigorosas; não se podia cantar na Semana Santa, a não ser rezando, e quem pronunciasse um nome indecente seria logo repelido.
Minha cabeça ficava povoada de vultos estranhos e sombrios, pressentindo a todo instante a imagem do lobisomem que se assemelhava a um cachorro gigante e negro, alumiando, olhos vermelhos e incandescentes, os dentes enormes e pontiagudos capazes de devorar qualquer vivente. A mula-de-padre era sem cabeça e só aparecia depois da meia noite, portando chocalhos estridentes; tinha as patas enormes com os peadores atados por correntes pegando fogo. Afirmavam que o estranho animal originava-se de padres pecadores que não respeitavam a abstinência sexual. Eu achava tudo isso confuso e uma vez tentei uma explicação de meu pai que resmungou: “tudo é mentira”. Apesar dessa afirmativa, continuei a temer a mula e o lobisomem.
Quando anoitecia, as famílias recolhiam-se para meditações, o lugar ficava silencioso como se fosse um cemitério. Não existia iluminação elétrica e as residências eram clareadas por candeeiros que fumaçavam as paredes e o nariz das pessoas. Minha mãe, quando falava qualquer coisa, o fazia em sussurros e qualquer ruído pela rua me deixava temeroso. Vinham as imagens do lobisomem, da mula-de-padre; meus irmãos se entreolhavam.
O vento pelo telhado era como um presságio e lembravam as cenas da Paixão contadas por minha mãe. “Hoje começou o sofrimento de Jesus, preso e açoitado, crucificado e morto”. Ela falava de Pilatos, Herodes, Madalena e dois ladrões, um bom e outro mau, também crucificados ao lado de Jesus.
Em minhas ponderações, essas figuras citadas pareciam com pessoas de minha rua; Herodes seria semelhante a seu Edésio, coletor do estado, que residia na esquina, numa casa bonita; Pilatos parecia com o filho do doutor Márcio Coelho, que gostava de camisas coloridas, rapaz vistoso e sisudo; Madalena era toda Abgail que morava parede-meia à nossa casa, moça de cabelo vermelho, caracolado, namorada de um tal Ranulfo, ponta esquerda do Ipiranga local. Assim eu ia configurando os personagens do Novo Testamento com pessoas minhas conhecidas.
Meu pai contava estórias da quaresma de seu tempo de menino, mencionando penitências absurdas de pessoas que se cortavam com cacos de vidro açoitados na ponta de um cordão; os penitentes terminavam as obrigações retalhados, o sangue escorrendo pelo corpo. Quando chegava a Sexta-feira Santa, eu me encontrava com a cabeça confusa diante de tantas informações terríveis. Minha esperança consistia no Sábado de Aleluia quando me libertava de tanta assombração, como da mula e do lobisomem.
Eu voltava a brincar com os meninos da vizinhança, despreocupado, ouvindo música alegre, vendo gente andando sem medo pela rua; à noite assistia a queima do sujeito que traiu Jesus, no meio da praça apinhada de pessoas. Em minhas ideias, Judas parecia com um tonto maltrapilho que perambulava pedindo coisas pelas portas, correndo atrás dos meninos que o atormentavam; era apelidado de Papo-de-Rola. O Sábado de Aleluia clareava minha cabeça.
Acabava a
Semana Santa e com ela sumiam as figuras que assombravam meu juízo. Pela manhã,
o coletor-Herodes passava metido numa roupa de linho branco, gravata preta,
sapatos de duas cores; o filho do doutor Márcio Coelho aparecia na varanda
exibindo uma camisa estampada de azul, com pose de Pilatos; Abigail surgia à
janela, ajeitando o cabelo caracolado e vermelho, lembrando-me Madalena; os
dois ladrões haviam-se separado – o bom, voando para o céu e o outro permanecia
na cruz, sozinho. O local da crucificação aparecia em meu juízo parecendo o
quintal da minha casa, - um pé de pitanga, um abacateiro, hortaliças e o
canteiro onde minha mãe plantava rosas e girassóis.
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª EDIÇÃO)
Ariston Caldas
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