(Dos “URUPÊS”)
A Monteiro
Lobato
Naquela manhã nevada,
de neve toda caiada,
banquei-me em cima do Crista,
e fui propor meu negócio
ao Tio Amâncio Queimada.
Para as bandas do Mojeiro,
eu tinha uns lotes de terra,
de boa terra, eu sabia,
mas tão cobertas de mato,
que não havia uma aberta
que deixasse ver um trecho
do chão, entre a mataria.
Seis léguas de caminhada,
eu tinha de cavalgar,
para chegar à Fazenda
do Tio Amâncio – o roceiro.
Tio Amâncio há muitos anos
abandonara a cidade
pelos trabalhos do campo
de vida laboriosa,
mas de vida em que se goza,
vivendo com a liberdade.
O negócio era o seguinte:
Eu dava todo o terreno
para o Tio cultivar,
e, depois de cultivado,
a fim de o recompensar,
seria dele somente
todo o dinheiro ganhado
no decorrer de dez anos,
com o produto do roçado.
Findo o prazo combinado,
seria o lucro, depois,
igualmente, meio a meio,
dividido por nós dois.
Era uma bela proposta,
que o velho amigo Queimada
chamaria: - uma surpresa!
Assim, montado no Crista,
n’um doce carrego-baixo,
para a vivenda do velho
lá me botei de jornada,
namorando a natureza.
O meu cavalo, vaidoso,
mais alvo que a luz do dia,
marchava todo garboso,
pisando a terra tão leve,
que quem passasse, diria,
que era um cavalo de leite,
rasgando a espuma da neve.
No princípio da viagem,
a nevada que caía,
cobria toda a paisagem
com a branquidão do seu véu.
Mas, enquanto pelos bosques
e florestas eu seguia,
a neve em subtil transporte,
como um velário, ascendia
brancamente para o céu.
Depois....................................
Como se muda um cenário,
sem dissensão de velário,
houve por todo o sertão
uma transfiguração!
O sol, que vinha brotando
lento e lento resfolgando,
fogoso, como um titã,
parecia, assim tão louro,
um sabão feito de ouro,
lavando toda a manhã.
Porque o sol, que era a alegria,
o sol, cheirando a sol novo,
era tal e qual um ovo
que a Ave Preta da noite
tivesse posto e chocado
no cimo da serrania,
um ovo, de onde saía,
de orvalho todo orvalhado,
um pássaro branco: - o Dia!
Os galhos, festivamente,
como os clarins da floresta,
saudavam o sol nascente!
Balançando-se na rede
de um galho todo enflorado
de uma bela Floriana,
a sabiá, doidivana,
abria a flor penarosa
do hino matutinal,
enquanto a rola, extremosa,
despenava-se, queixosa,
sob as palmas verdorosas
de um nervoso bambual.
Dos ramos se desnastrando,
sacudidas pelas brisas,
que vinham saudando os ninhos,
as folhas, mumificadas,
rolavam pelos caminhos,
como se fossem sambando,
ao som das cordas magoadas
das violas dos passarinhos.
Agora, um rio cheiroso
que, rumoroso, carpia
a sua melancolia,
e onde o meu Crista bebia,
como se fosse uma pia
d’agua benta de um Jordão!
Parece que aquelas águas
iam fluindo, medrosas,
(quem sabe?!...) talvez saudosas
De todo aquele sertão.
Viajor! Acaso já viste
coisa que seja mais triste
do que a saudade de um rio,
que em procissão, lentamente,
num coro fresco de mágoas,
vai refletindo nas águas
o céu luzente ou sombrio?!
Quem perlustrou solitário
pelos recessos das matas,
no que eu penso, já pensou!
Quem sabe se essa amargura,
que nas águas mais se apura,
não procede das endechas,
das dores, mágoas e queixas,
de tudo que em seu transcurso
o rio cristalizou?!!
Mas esse, que, por momentos,
foi meu guia e companheiro,
era um rio prazenteiro!...
Porque o rio caminhava
tão buliçoso e tão lindo,
que, pelas brisas beijado,
com o rosto todo frisado,
quem visse o rio, jurava
que o rio estava-se rindo!
Sob um zimbório de mato,
um riozinho, um regato
rezava uma prece d’agua,
muito baixinho e sonora!
Era assim tão carinhoso,
tão suave e religioso,
porque os anjos uma tarde
lavaram nas suas águas
os pés de Nossa Senhora!
Nas alcovas de esmeraldas
noivavam as juritis!...
Numa velha Timbaúba
gritava, saudosamente,
um bando de bem-te-vis.
Brancas, verdes, amarelas,
pardas, rubras, azuladas,
as borboletas viajavam,
como flores tresloucadas!
Um papagaio palreiro,
petulante e senhoril,
tagarelando, parece
que dizia, prazenteiro:
“não há manhãs tão mimosas,
como as manhãs do Brasil.”
Um cardeal, paramentado,
fitando o sol redourado,
com a sua lâmpada acesa,
em seus cantos, suplicava
a Deus, pela Natureza!
No palácio esplendoroso
de uma enorme perobeira
ouvia-se a voz da flauta
de um sabiá laranjeira.
Um caburé, solitário,
gemendo dentro da moita
sua eterna “ladainha”,
ouvindo o poema das aves,
dizia em soluços graves:
“Todos cantam sua terra!
Também vou cantar a minha!”
E o sapo lhe respondia:
- e eu, o cantor dos pantanos,
- que a fealdade apadrinha,
- por ser também brasileiro,
- nas débeis cordas da lira,
- hei de fazê-la rainha! –
Um tico-tico, que é feio,
mas que em sã brasilidade
nenhum passarinho o vence,
proclamava, com vaidade: -
eu sou um pobre violeiro,
mas sou cantor brasileiro
como o Catulo Cearense!!
Na cerrada mataria,
uma araponga batia
numa sonora bigorna
com o duro ferro do malho,
a Deus, alegre, saudando,
e ao mesmo tempo entoando
uma oração ao trabalho!
As trepadeiras floridas,
feridas nos seus verdores,
quando o Crista galopava,
sobre nós dois atiravam
a sua bênção de flores!
A capelinha do monte,
muito longe, esbranquiçada,
era a imagem da tristeza
de uma casa abandonada.
Janelas, portas, fachada,
dessa igreja pequenina,
tudo, tudo ameaçava
cair um dia em ruína.
Mas, na coroa do monte,
naquela hora em que vinha
o sol já se aproximando
para sondar o horizonte,
quem fosse na capelinha,
lá dentro dela ouviria
a voz de um órgão chorando
e um peito humano cantando
a prece final do dia.
Pois bem. Aquela igrejinha,
em cuja nave reboava
um canto de litania,
tal qual se me afigurava
a imagem triste do Poeta,
que é um templo em ruinaria!
Por fora, - a dor, a pobreza,
a mágoa, a luz da tristeza,
que é mãe da filosofia!
Por dentro, - as vozes perenes
das nove musas solenes,
cantando em órgãos celestes,
no grande altar da Poesia.
O sino da capelinha
em seis pancadas floria.
E a tarde foi fenecendo,
foi morrendo, foi morrendo,
serenamente morria,
até que, afinal, morreu,
como morre em lábios tristes
um soluço de agonia.
No alto de uma esplanada,
já se avistava a vivenda
do velho Amâncio Queimada.
Por detrás da penedia,
como uma rosa afogueada,
o sol desaparecia.
Tirei meu chapéu de feltro,
e fiz a minha oração,
ao som da prece que a aragem
gorjeava no templo verde
da profunda mataria.
Para não ser surpreendido
pela noite, dei um tope
no meu Crista vigoroso,
que, relinchando, fogoso,
pelas veredas e atalhos
se desmanchou num galope.
E, enfim cheguei. “Ô de casa!”
já no terreiro exclamei.
“Pode chegar!” responderam...
E eu para a casa encristei.
Quando o velho Tio Amâncio
viu quem era o viajor,
“disapêie”, então me disse,
e abrindo os braços nodosos,
abençoou-me com calor.
Depois, levando o cavalo
para as bandas do curral,
“Pingo d’Agua, Pingo d’Agua!...”
chamava alguém que já vinha
surgindo das flechas verdes
do verde canavial.
Era a filha do Queimada,
que eu vi, quando era criança,
e, depois de tantos anos,
via, ali, perto de mim!
Se os serafins são morenos,
eu juro ter visto um dia
a imagem de um serafim!
Era mulher só de nome!
Pongo d’Agua, a feiticeira,
tinha a carinha brejeira
de uma rosa carminada;
e quando se remexia,
parecia uma mangueira
moça ainda, quando sente
na frondezinha fremente
o doce pungir dos zéfiros,
que viajam de madrugada.
Depois de ser sertaneja,
nunca mais veio às cidades!
Por isso aqueles dois olhos
choravam naquele rosto,
como um casal de saudades.
As mãos, quando se agitavam,
transparentes, como gazas,
e uma linguagem falavam,
linguagem que eu nunca ouvi,
eram como duas asas
de um mimoso colibri.
Era-lhe a voz tão cadente,
tão meiga, tão redolente,
que eu só posso comparar
com a voz macia de um galo,
longínqua, terna e saudosa,
abrindo a flor sonorosa
da meia-noite, ao luar!
Mas eis que volta o roceiro,
que me veio interromper
naquela contemplação.
Pingo d’Agua, a sua filha,
me pedindo permissão,
foi prender um cabritinho,
que estava esfolhando as flores
d’um formoso bogari.
Tio Amâncio convidou-me
para entrar: no que acedi.
Depois de uma breve pausa,
falei-lhe, sem mais demora,
sobre a proposta, em questão.
E ouvindo a minha proposta,
com delicada atenção,
oscilava com a cabeça,
em sinal de negação,
para, depois de falar-lhe,
responder-me, decisivo,
com esta simples frase: “Não!”
“Não é possível, senhor!”
“A mocidade esfolhou-se,
já não tenho mais vigor,
os anos, feros, tiranos,
deixaram-me sem calor!...
meus braços, debilitados,
já não podem trabalhar!
Noutro tempo era possível,
mas agora era risível
sua proposta aceitar.
Como vê, se inda trabalho
nesta Fazenda, que é minha,
(e sempre trabalharei,
enquanto a Deus aprouver...)
é por causa dessa filha,
da sua terna avozinha
e a minha boa mulher.
Não leve a mal a franqueza
deste rude lavrador!
cedo à lei da natureza!
não posso mais, meu senhor!”
Não insisti. Nesse instante,
Dona Branca aparecia,
Trazendo duas tigelas
Do mungunzá familiar.
Depois de cumprimentar
a mãe de Pingo – a formosa –
(que, pela fisionomia,
Parecia estar doente),
Sorvi semvergonhamente,
Aquela ceia gostosa,
Que veio mesmo a calhar!
Mas depois... Forte muxinga
tive então de suportar!
Mas depois... Forte muxinga
tive então de suportar!
Tio Amâncio, dando à língua,
não me deixou mais falar!
Falava-me da lavoura,
das frutas do seu pomar,
das cabras e das ovelhas,
do seu cavalo sem par,
do fino mel das abelhas,
de tanta coisa, que, enfim,
comecei a cochilar!
Só assim Tio Queimada
deu fim à sua eloquência,
e me deixou descansar.
***
A noite foi bem dormida.
Ao levantar-me, cedinho,
antes do nascer do dia,
quis ver a avó de Pinguinho,
que há muitos anos não via.
A velhinha octogenária,
que, tão velha, inda trazia
os seus cabelos grisalhos,
cosia ao pé da janela
uma colcha de retalhos.
E quando o velho Queimada
junto dela me levou,
depois de cumprimentá-la,
este jogo de carinhos
entre nós dois se enlaçou.
- Deus ajude a quem trabalha! –
“Deus Nosso Senhor me valha,
que inda posso trabalhar”.
- Vejo com muita alegria
– que inda pode costurar” –
“Graças a Deus Redentor...”
– que, por muitos, muitos anos,
- lhe conserve esse vigor. –
“Mas... queira-me desculpar,
se perpetro um desacato:
como se chama o senhor?!
- José Monteiro Lobato. –
“Tu és o grande escritor,
um doutor que há tempos fez
um belo livro de histórias,
que tem por nome: Urupês?”
E a velha que remexia
nos retalhos da memória,
acrescentou: “uma glória
de todo o nosso Brasil!”
- Como me viu tão criança,
quer ser comigo gentil!
- “Monteiro, eu não me lembrava!
Quando viemos da cidade,
tu eras inda infantil”.
E a velhinha, abrindo os braços,
para abraçar-me, exclamou:
“Minha vista já cansou!
Perdão, meu filho, perdão!
Deixa matar a saudade
no abraço da gratidão!”
Depois de dar-lhe o abraço,
sentindo grande emoção,
pedindo ao velho Queimada
que o meu cavalo arreasse,
depus-lhe um beijo na face
e um beijo no coração.
Disse adeus à dona Branca,
disse adeus à Pingo d’Agua,
reabracei a avozinha,
e, dando um aperto de mão
na mão calosa e enrugada
do velho Amâncio Queimada,
do amigo velho de então,
banquei-me no meu cavalo,
excitei-o em leve tope,
e atirei-me pela estrada,
primeiro, em carrego-baixo,
depois... a todo o galope.
***
Três anos eram volvidos,
quando me veio aos ouvidos
uma notícia fatal!
Pingo d’Agua, que há três anos
eu tinha visto surgindo
do verde canavial,
fugira do lar paterno
com um tocador de viola,
depois que ouviu o runxóla
no samba de um festival.
Não me contive!... Inda mal!
Pingo d'Agua! Era impossível!
Que afetos o pai lhe tinha!
Que fora de Dona Branca?!
Que seria da avozinha?!
Uma flor tão bonitinha
com um coração insensível!
Então era uma serpente
o passarinho inocente,
que tinha a voz transparente,
veludosa e luminar,
como a voz terna de um galo,
que de tão longe, parece
uma dor, que a gente esquece,
e sai do peito, e, sonora,
pela boca do silêncio,
vai correndo noite afora,
sonorizando o luar!?
Não podia acreditar!
Um coração tão sensível!...
Pingo d’Agua!? Era impossível!
Banquei-me em cima do Crista
e para o Engenho do Amâncio
a rédeas soltas voei.
Ia cego! Na viagem
nada vi!... Toda a
paisagem
era um sudário de dores!
Nem na alegria das flores
nem nos pássaros cantores,
nem nos sonoros regatos,
nem nos verdores dos matos
os meus olhos descansei!
Nada disso me enlevava,
porque n’alma, que sangrava,
surdamente eu carregava
um peso, que não deixava
meu coração palpitar!!
Passei um dia tristonho,
um dia todo a viajar!!
Por detrás da penedia
o sol, roxo, se escondia
e o meu cavalo nitria
pela estrada, a galopar!
Era preciso chegar.
A noite já se envolvia
na escuridão virginal,
quando à Fazenda cheguei.
Perseguido dos cachorros,
abri com os pés a porteira,
galguei, de um surto, a ladeira,
e, já no pátio, num grito,
pelos de casa gritei.
Nem uma voz respondia!
Gritei!... Mas em vão, em vão!!
Um perdigueiro latia,
como se fosse um trovão.
Ouvi um leve rumor!
Era o velhinho, o Queimada,
que vinha da encruzilhada,
correndo, de tropelão.
- Pingo d’Agua, meu amigo,
- que é feito daquela flor?!
E, ele, triste e desolado,
n’um soluço estrangulado,
respondeu-me: “Evaporado!
“Foi-se embora, seu doutor!”
E com saudades da filha,
com os olhos rubros de mágoa,
lhe caíam pingos d’agua
pelas faces, já sem cor!
- E Dona Branca? – “Morreu!”
- E a avozinha – “Emudeceu!”
E estas palavras dizendo,
lá foi pelo mato
afora,
chamando pela filhinha,
que o lar paterno esqueceu!
Amarrando o meu cavalo
no tronco de um calumbi,
fiz volta pelo terreiro,
que rodeava toda a casa,
e já no portão trazeiro,
levantei a taramela,
abri a velha cancela,
e entrei, com os olhos em brasa,
pela sala de jantar.
A velhinha estava ao lado
de um oratório enfeitado,
com os olhos postos n’um Cristo,
que parecia falar!
Chegando ao canto da sala,
a fim de não assustá-la,
lhe disse aflito: - sou eu!
- É o velho amigo Lobato,
que inda guarda, mui grato,
aquelas doces palavras
com que há três anos volvidos
nesta sala o recebeu.
- É o velho amigo da casa,
que já conhece a
desgraça
do mal, que lhes sucedeu!
- Dizei-me, por caridade,
se, por ventura, é verdade... -
Mas a velhinha, dorida,
com uma vozinha entupida,
minha palavra cortou!
“Pingo d’Agua nos deixou!
Obedecendo os arrancos
de uma voz que se adivinha,
teve medo deste inverno...
destes cabelos tão brancos,
e, vendo um' outra andorinha,
bateu asas... Emigrou!
A vida é triste, tão triste,
que a morte um bem nos parece!
Não são os anos!... A dor
é que nossa alma envelhece!
O coração é o primeiro
que na desgraça fenece!
Parece que faz dois meses
que o senhor esteve aqui!
Senhor, como em poucos dias
na amargura envelheci!!!
Agora, que mais me resta,
se a filha e a netinha ingrata
pra todo sempre perdi!”
E mostrando um bauzinho
de folha, ao pé do oratório,
mais triste continuou:
“E a colcha? O senhor se lembra?!
Guardo ali, como a saudade
de meu pingozinho d’Agua
que a desventura secou!”
E ao perguntar-lhe se tinha
terminado a colchazinha,
mais triste me respondeu:
“Nem ficou pela metade!...”
E um lausperene de estrelas,
como lírios de martírios,
em seus olhos floresceu!
E abrindo a caixa de folha,
para a colcha me mostrar,
desdobrou-a sobre a mesa,
abrindo-a, de par em par.
“Estes retalhos de chita...”
me disse, “têm uma história,
seu doutor, muito bonita,
mas hoje muito tristonha,
porque a desgraça enfadonha
essa história interrompeu!
Meu senhor: começa a história
desde que Pingo nasceu”.
Depois, sempre soluçando,
os pedacinhos de pano,
um a um foi apontando.
“Este aqui, de azul violeta,
eu tirei da camiseta,
da primeira que vestiu!
Estou vendo-a nos meus braços,
quando em beijinhos e abraços
para a Minh ’alma sorriu!
O outro, o de ramazinha,
foi presente da madrinha,
que Deus levou! Faz um ano!
Nesse tempo já reinava;
dia e noite traquinava
com aquele amigo – o Bichano!”
E mostrou-me na parede
a pelezinha do gato,
ao lado do seu retrato.
“Este, (veja como é lindo!!)
cor da flor do tamarindo,
foi um presente do tio:
com ele, um dia, brincando,
Pinguinho caiu no rio!
Quando a vi toda molhada,
dei a primeira palmada
naquela coisinha ruim!
E enquanto eu triste chorava,
ela de mim caçoava,
sorrindo alegre pra mim!
Este outro, de cacundê,
foi um presente maior,
quando ela disse de cor
toda a carta do á-bê-cê!!!
Este aqui, todo de flores,
quem lhe deu foi seu padrinho
no dia em que o ladrãozinho
sete agostos completou!
Vestiu no dia de Reis,
no mesmo dia em que fez
um tutu tão gostosinho,
que ela mesma temperou!
Olhe! Veja!... Este, roxinho,
foi de uma saia comprida,
que a seu pedido eu lhe fiz!
ficou tão envaidecida,
tão ancha e tão presumida,
que, por vesti-la, pensava
que fosse uma imperatriz!
Com aquele cor de pinhão,
em vinte e quatro de
Junho,
dançou pela vez primeira,
na noite de São João!
Foi o vovô quem lhe deu,
no dia em que recebeu
a primeira comunhão!”
“Aquele, de azul celeste,
ela o vestiu... (sabe quando?!)
no dia do meu natal!
Encheu-o todo de flores
e como uma flor, sorriu,
e, quem a visse, diria
que Pingo era um roseiral.”
Fingindo que me lembrava,
eu lhe afirmei: - este, róseo,
é da blusa com que estava,
quando a vi, noutra visita,
formosa, fresca e bonita,
como uma tarde estival! –
“Enganou-se!...” E assim dizendo,
deixava cair dos olhos
sementeiras de cristal!
“Quando o senhor, há três anos,
- respondeu-me – “esteve aqui,
o senhor viu-a com este,
que é da cor do buriti!
Eu já estou muito velhinha,
mas inda não me esqueci!”
- E estezinho, este amarelo? –
“Este aqui, de cor funesta?!
Foi o vestido da festa
em que ela viu o bengola,
o tocador de viola,
causa desta desventura!”
E pondo as mãos sobre o peito,
suspirou: “Desde essa noite
aquela viola maldita
abriu-me aqui dentro d’alma
esta amargura infinita,
que há de levar-me, bem cedo,
ao fundo da sepultura!
E, agora, meu senhor!...
Este, veja, - o derradeiro,
foi mais cruel!...
mais traidor!...
Foi com este verde-claro
que ela fugiu com o violeiro!”
E assim dizendo, chorava,
e com a colchinha enxugava
o rosto, que era um chuveiro!!
“Seu doutor, esse vestido,
macio, como um veludo,
ficou-lhe tão ajustado,
que às vezes chego a pensar
que, por tão bem lhe ficar,
esse vestido encantado,
esse vestido malvado
foi o culpado de tudo!!”
Depois, abrindo o oratório,
e tirando o Crucifixo
e dando um beijo em Jesus,
ajoelhou-se aos pés da cruz,
soluçando estas palavras
com os lábios cheios de luz:
“Agora eu peço a Jesus,
que me ampare, que me valha,
e deste presentezinho,
que ficou inacabado,
deste mimo de noivado
me faça, em breve, a mortalha!”
E com a colchinha abraçada,
em convulsões sufocada,
pelos olhos soluçando,
hóstias d’alma derramando,
foi, pouco a pouco, inclinando
a cabeça enluarada,
para em lágrimas se ungir!
Relembrando-lhe a agonia
da Santa Virgem Maria,
beijei-lhe a fronte gelada
de profundas comoções.
O Crista, com a noite
fria,
lá fora, ansioso,
nitria,
com desejos de partir!
Banquei-me no meu cavalo
cheio de ardor e coragem,
e dei começo à viagem
por aquelas solidões,
depois de lançar, primeiro,
um triste olhar de viageiro,
para nunca mais revê-las!
O céu estava impregnado
de funda melancolia!!
Mas Deus, nos céus, estendia
A sua colcha de retalhos!!
***
Vós, artistas, escultores,
poetas, músicos, pintores,
vós, ó grandes sonhadores,
argonautas do Ideal,
que, de retalho em retalho,
andais cosendo uma colcha
de quimeras... ilusória...
para o tálamo da Glória,
a vossa Noiva imortal,
haveis de ver, sonhadores,
um dia, sem dor, sem mágoa,
que ela – a Glória, a Pingo d’Agua,
(nos braços do desengano,
desse Violeiro Tirano,
o Proxeneta rufião...)
vos deixará, solitários,
como eternos visionários,
com uns farrapos de sudários,
para enxugardes as lágrimas
da vossa Desilusão!
(POEMAS BRAVIOS)
Catulo da Paixão Cearense
* * *
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