Aproveitando o confinamento, estou há semanas tentando
arrumar minha biblioteca que virou Babel, sem ser a de Borges. Ficava
constrangido quando visitas olhavam para tudo e, educados, nada diziam. Fiquei
aliviado quando vi nos jornais a biblioteca do Aldir Blanc, bagunça memorável,
montes de livros empilhados, papéis, caixas, objetos. Do meio daquela mixórdia,
todavia, saíram algumas das mais belas letras da música popular brasileira,
comoventes, ríspidas. Mexo que mexo e do remelexo saiu um livrinho de capa
marrom, levemente roída pelas traças. Ao ver aquele exemplar da segunda edição
italiana de Un Amore, romance de Dino Buzzati, edição da Bompiani, Lucía Curia
surgiu dentro do meu confinamento. Ao pronunciar seu nome, acentue o i, ela
fazia questão.
Gaúcha bela e sensual, seu nome inicial era Lucía Regina
Tomasina Curia. Nos anos em que foi a mais bela e descolada e diferenciada
modelo de moda, era apenas Lucía, eventualmente Curia. Mais tarde casou-se com
o banqueiro milionário, diplomata e colecionador Walther Moreira Salles, do
grand monde do universo, e tornou-se Lucia Moreira Salles, que ela abreviava
para LMS. Assim, subitamente na manhã paulistana, nos vimos juntos em uma
livraria de Pisa, Itália, em certa manhã de 1963.
Era uma folga da caravana da moda brasileira da Rhodia, que
andava pelo mundo fazendo desfiles com tecidos desenhados por artistas
plásticos como Di Cavalcanti, Juarez Machado, Volpi, Darcy Penteado, Aldemir
Martins, Carybé (argentino naturalizado baiano). Na noite anterior, tínhamos
estado no Festival dos Dois Mundos, em Spoletto, e, quando Lucía atravessou a
passarela, ouvi os aplausos de Luchino Visconti, esse mesmo, o diretor de Rocco
e Seus Irmãos, Vagas Estrelas da Ursa, O Estrangeiro (baseado em Albert Camus),
Morte em Veneza, O Leopardo, Senso, Os Deuses Malditos. Ele estava na minha
frente. Tinha olho para as grandes coisas.
Foi Lucía quem, no café da manhã no hotel, me puxou e lá
fomos, com o cineasta Fernando de Barros e o músico Sergio Mendes, para uma
livraria, cada um em busca do seus interesses. Eu morava em Roma, na época, e
me chamaram, acompanhava o grupo para fazer o texto de um documentário que
seria exibido no Brasil. Em Roma, conheci Luis Carta que se tornaria amigo e
grande amigo no futuro. Quando Thomas Soto Correa me levou para a Claudia, fiz
um exame psicotécnico. Fui reprovado e Luis e Thomaz me contrataram assim
mesmo, fiquei sete anos lá.
De sete em sete, vim mudando de publicação. Na pequena, mas
bem abastecida livrariazinha, eu estava fascinado com o roteiro do filme Oito e
Meio, de Fellini, edição da Rizoli, quando Lucía me trouxe um livrinho. Vi o
título, Un Amore. Cara irônica, ela era sempre pura malícia, me perguntou:
“Conhece Buzzati?”. Disse que não, ela me entregou e esclareceu: “Comprei para
você, ele é mais ou menos seu gênero, é jornalista, arredio, caladão, mas um
belo escritor. Você não diz que vai escrever livros?”. Meu primeiro livro
sairia dois anos depois. Naquele momento, pelas mãos daquela modelo, fiz a
descoberta de um de meus autores favoritos.
Acompanhei a carreira dele, o sucesso de O Deserto dos
Tártaros, Um Amor e de O Segredo do Bosque Velho (circula no Brasil a versão
portuguesa editada pela Cavalo de Ferro) e seus contos, peças teatrais, seus
poemas. Morto em 1972, aos 66 anos, Buzzati foi contista, poeta, artista
plástico, e seu mundo cheio de alegorias e beirando o fantástico forneceu
faíscas em livros meus como Cadeiras Proibidas e mesmo Não Verás País Nenhum e
Desta Terra Nada Vai Sobrar... Buzzati participou de uma geração italiana
brilhante que teve nomes como Moravia, Pavese, Bassani, Natalia Ginsburg,
Brancatti, Bonaviri, Silone, Vittorini, Elsa Morante.
A maioria teve suas obras adaptadas para o cinema, foram
grandes filmes nas décadas de 1960 e 1970. Tenho uma edição brasileira de Un
Amore, editada pela Nova Fronteira, tradução de Tizziana Giorgini. História do
amor de Antonio Dorigo, um cinquentão, por uma prostituta, o livro causou furor
e escândalo na época de seu lançamentos na Itália. Foi filme em 1965, com Agnés
Spaak, filha do célebre roteirista Charles Spaak, autor de A Grande Ilusão,
clássico de Jean Renoir, de 1937.
Lucía, que falava três línguas, sempre foi uma modelo
diferenciada no mundo da moda brasileira. Pioneira de novas mentalidades e
maneira de encarar e estruturar a carreira, embrião de Gisele Bündchen. Depois
de desfilar para Dener, estilista must dos anos 1960, Lucía instalou-se em
Paris, e tornou-se o braço direito de Chanel. Valentino adorava vê-la na
passarela. Enfim, casou-se com Walther Moreira Salles. Viúva, desde 2001, pouco
antes de morrer, aos 70 anos, ela produziu/patrocinou uma edição fac-similar
preciosa, A Portrait of Oscar Wilde, com cartas, contos e poemas do autor de O
Retrato de Dorian Gray. Moreira Salles tinha os originais em seus arquivos.
Feito com um cuidado especial – as 185 páginas são costuradas à mão e
encadernadas na Itália pela Legatoria Rigoldi, de Milão. Preciosidade para
bibliófilos que foi celebrada nos meios literários dos Estados Unidos e da
Inglaterra. Tudo isso me veio à mente saindo do montículo de livros
empoeirados, esquecidos. Releio Buzzati.
O Estado de S. Paulo, 03/07/2020
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Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11 da
ABL, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.
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