22 de junho de 2020
oje passo ao lado do coronavírus, sem lhe virar as costas.
Não subestimo a pandemia, pelo contrário; perdi amigos, de momento são dele
vítimas, alguns com gravidade, gente que me é próxima, parentes; a vacina
continua esperança, incógnita envolta nas brumas do futuro. O próximo vulnerado
bem poderá ser eu, estou de cheio no grupo de risco, chances menores de
escapar, chances maiores de ir a óbito ou de recuperação com sequelas. Como não
se alarmar?
À vera desde semanas tenho reflexões sobre pontos da
situação — política, moral, psicológica — criada pela pandemia; e quando as
escrever, tentarei não divulgar meras repetições do que outros mais capacitados
estão espalhando aqui e lá fora. Oferecer pratos requentados, mesmo nutritivos,
nunca foi o mais atraente.
Preocupa-me ponto em especial, ainda hipótese chã, que
poderia vir a ter relevância; até agora não li nenhuma alusão a ele. Fica para
próximo artigo. Já advirto, conjeturas, uns poderão gostar, outros terão
reservas. Paciência, ainda serão meras conjeturas, nada mais corriqueiro do que
aceitá-las ou recusá-las. Por outro lado, despreocupa-me a possibilidade de
levar chumbo, mesmo fogo amigo, de há muito virei boi do couro grosso.
O artigo de hoje, passando longe do vírus, repito, por
surpreendente que possa parecer, surge da arrumação de gaveta bagunçada. Foi
preciso jogar muita coisa fora, e a seguir ordenar com paciência, pelo menos
minimamente, o que ficou. Na papelada encontrei esquecida preciosidade, pela
foto e pelo texto: o cartão de Natal do Príncipe Dom Luiz de Orleans e
Bragança, de 2013. Palavras de afeto e irresignação.
Dom Luiz é o Chefe da Casa Imperial do Brasil, todos sabem.
O cartão comenta a foto da avó, a Princesa D. Maria Pia (foto acima),
clicada aos 19 anos — ela nasceu em 1878. Natural, a figura saída da História
evocou de plano a constatação, aquela moça poderia ter sido por longos anos a
Imperatriz do Brasil. Como teria se desempenhado? Que marcas deixaria na
sociedade e no governo? Na história do País?
Candura, esmero, elevação, foram impressões primeiras
despertadas pela foto de uma quase menina vestida de branco, olhar penetrante,
um leque pendente da mão direita. Fui invadido por outras impressões:
seriedade, leveza, delicadeza, bom tom, simplicidade, qualidades que
nobilitavam o ar aristocrático.
Borbotou incontenível o confronto. Explico-me. A vida
pública do Brasil, não é de hoje, está empanzinada de cenas sórdidas, entulhada
de gente desbotada (na mais benévola e parcial das qualificações), da qual boa
parte a corrompe e avilta, estadeando arrogância, imoralidade e primarismo. Aí
o senso patriótico gritou forte. Amargurou-me o contraste entre a chusma
desordeira que observo entristecido e a figura serena de uma moça
despretensiosa, a figura indicava, provavelmente com enorme capacidade de influir
e formar pelo bom exemplo.
A simplicidade de D. Maria Pia, ar modesto e tão senhora,
contrastava no meu espírito com o que vejo todos os dias, no mundo oficial e na
vida privada: cabotinismo, pedantismo, deboche, petulância, grã-finismo. Em vez
de tanto retrocesso e obscurantismo, poderíamos ter experimentado avanços
civilizatórios, com grande benefício social, impossibilitados, dói a
constatação, pela subserviência irrefletida a preconceitos deformantes.
Volto à Princesa. Não custa lembrar, a grande arte de
governar está na exemplaridade; acessível a todos (e, sob outro ângulo,
paradoxalmente, com grande impacto, a poucos; vale muito o que hoje em geral se
denomina carisma). “Verba movent, exempla trahunt”, bons exemplos cintilam
e arrastam. Maus exemplos afundam. Os “role models”, cujo estudo ocupa a
tantos pesquisadores, têm enorme papel formativo, potencial para promover
inclusão social e impedir dilacerações nacionais.
E então, de um lado, longe, lá no século XIX, esplendia na
foto o conteúdo nobre expresso na postura fidalga, tudo bem preparado para vida
pública altamente favorecedora do bem comum; de outro, junto a nós, pleno
século XXI, entenebrecedor o fundo cavernoso manifestado nos esgares
contrafeitos de um sem-número de figuras caricatas do Brasil contemporâneo,
cada vez mais debilitado e manchado por nota de abjeção em sua vida pública.
Pensei cá comigo, pobres de nós, merecemos esta (má) sorte? Terá Deus se
esquecido de nós? Afastei o pensamento, o débito deve cair na nossa conta.
Adiante. O nome Maria Pia, familiar, em nada rescende ao
postiço e rebuscado. A postura ereta e a mirada segura mostram afavelmente o
que ela é. No texto enaltecedor de Dom Luiz (foto ao lado), elegante e
simples, mareja a admiração pela avó, com quem conviveu, falecida 40 anos
antes, em 1973. Evola das palavras a irresignação do neto, não aceita que vá se
apagando injustamente a memória da avó, tão necessária à família e até à
História. “Eu e meus irmãos tivemos o privilégio de estreito contato com
Vovó. […] Em extensas caminhadas ou em longos serões, ela nos comunicava seu
grande afeto, transmitindo a visão do mundo e os valores”. Educação pela
palavra e pelo exemplo.
Recorda Dom Luiz: “Buscou ela identificar-se com o
Brasil. Aqui esteve em 1922, por ocasião do centenário da Independência,
acompanhada do filho mais velho, meu pai D. Pedro Henrique […]. Sua presença
foi muito solicitada então, chegando a participar do lançamento da pedra
fundamental do Cristo do Corcovado, monumento cuja edificação teve origem em um
pedido da Princesa Isabel”.
Deixo, por fim, ainda algumas palavras de dom Luiz: “D.
Maria Pia teve a honra de avistar-se pessoalmente com o Papa São Pio X, e
conservou do encontro, com profunda veneração, uma foto dedicada do Pontífice,
hoje em minhas mãos”. Bonita atitude filial de dois católicos, o neto e a avó,
merece registro. Com esteio em ensinamentos de São Pio X, Dom Luiz, muito
oportunamente, termina a saudação de Natal reiterando sua fidelidade à
civilização cristã, que deseja ver fulgurando no Brasil.
Por que o título simples deste artigo, só com a palavra
simplicidade? Reconheço, pode parecer estranho, pois haveria multidão de
títulos a escolher. Fiquei com simplicidade, chamou-me a atenção na foto, mas
teve ainda razão mais ampla, o conceito expressa a união harmônica de virtudes.
Evoco o ensinamento do Doutor Angélico. Na Suma escreveu São Tomás de Aquino: “Em
sentido contrário, Agostinho [santo] afirma: ‘Deus é verdadeira e sumamente
simples’. […] Para nós, os compostos são melhores do que os simples, porque a
perfeição da bondade da criatura não se encontra em um único simples, mas em
muitos; ao passo que a perfeição da bondade divina se encontra em um único
simples, como se verá (q. 4, a.2).”
Faz falta enorme para o progresso social (para o de cada um
de nós também) o tipo de personalidade da qual D. Maria Pia foi grande exemplo.
Dom Luiz tem razão: a avó não deve ser esquecida.
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