História de Maria Camisão
Cyro de Mattos
A mulher,
apelidada de Maria Camisão, andava vestida em uma camisa folgada, mangas
compridas, de tão grande batia nos joelhos. Ela era de estatura baixa, os
cabelos sempre assanhados, a boca desdentada.
Alguns diziam que guardara como lembrança uma meia dúzia de camisas
grandes do seu homem, um preto alto e forte.
Aparecia com a
trouxa de roupa na cabeça. Descia o barranco do rio, juntando-se no areal às outras lavadeiras, algumas espalhadas pelas pedras pretas. Lavava,
esfregava, torcia. Ensaboava, batia com a roupa na pedra. E cantava uma cantiga
moída e remoída na sua voz triste. As
outras lavadeiras ouviam em silêncio o que ela cantava, falando de coisas
sentidas nas águas do rio da vida.
Ó água, água, água,
Torce e escorre
Toda minha mágoa.
Ó água, água, água,
Leva logo pro mar
Essa vida amarga.
Apesar das marcas
doloridas que guardava no peito e
que pulsavam quando lembrava da desgraça que fizeram com o
seu homem, nunca teve medo de enfrentar
qualquer tipo de trabalho caseiro. Varria os cômodos, lavava o pátio, limpava o quintal com a enxada, cuidava da roupa da
família. Com o dinheiro que ganhava nesses serviços ia passando a vida. Morava num barraco do bairro
mais pobre da cidade, no outro lado do rio.
Comentava-se que ela havia ficado adoidada depois que o
marido amanheceu enforcado na cadeia, dizem que a mando do delegado Ranulfo,
que armara para ele uma cilada. O delegado mandou que
dois soldados tomassem as caças
moqueadas e prendessem o homem chamado Barba Preta.
Os soldados aproximaram-se do homem na sua barraca que
vendia na feira, aos sábados, jaca, galinha, ovos e caça moqueada. Deram a ordem: “- Entregue
as caças abatidas e moqueadas, seu criminoso! É pra já!” O homem respondeu: “-
Nunca soube que abater bicho do mato fosse proibido nessas bandas, ainda mais nas matas que são
do meu pertence. ” Foi algemado nessa hora de discussão e xingamento.
Na cadeia, bateram
tanto no homem com o cinturão grosso, deram sopapos e pontapés seguidos que ele não suportou
a surra, caindo no chão desacordado.
Depois de preso cinco dias na cadeia, sem direito à visita da mulher,
comendo pão dormido e bebendo água imunda,
dormindo no chão de cimento,
amanheceu enforcado, pendurado na cumeeira da cela escura.
Disseram depois do episódio sinistro que foi o delegado
Ranulfo que mandou fazer a desgraceira para se apossar da roça do Barba Preta
nas Salteadas.
......
Cyro de Mattos é jornalista, cronista, contista,
romancista, poeta e autor de livros para crianças. Publicado em Portugal,
Itália, França, Espanha, Alemanha, Rússia, Dinamarca, México e Estados Unidos.
Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de
Letras da Bahia, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna.
Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz.
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