Meu nome é Magno.
Depois de ficar viúvo, fui morar com minha filha e meu neto
em um bairro aprazível e sossegado de uma cidade do interior do Paraná.
Sou como um Cravo que perdeu a Rosa, mas continua no jardim.
Vivo das boas lembranças e gosto de ser útil sempre que me é possível. Nunca
fui de muitas letras, mas leio a Bíblia, gosto de livros de aventuras e faço
palavras cruzadas com o dicionário por perto, naturalmente.
No princípio, era interessante observar a rua, o trânsito de
pessoas e veículos, os estudantes com seus fardos escolares, o ruído de uma
cidade maior. Hoje, prefiro o sossego de meu quarto a buzinas e vozes na
calçada.
Da porta da cozinha de nossa casa, eu via uma igreja e
várias casas a uns sessenta metros de distância. Entre elas, um sobradinho com
duas janelas e uma chaminé que soltava fumaça o dia inteiro e me trazia boas
lembranças do antigo fogão a lenha da fazenda de meus pais. Enquanto esperava a
hora do almoço, de vez em quando eu olhava a fumaça, ora espessa, ora quase
imperceptível e, por isso, podia calcular a quantidade de lenha que ardia na
boca daquele fogão.
Certo dia, além da fumaça, vi uma camiseta vermelha
dependurada em uma das janelas do sobradinho. Às vezes, ela balançava e parecia
que ia cair a qualquer momento. Com certeza, a vizinhança também estava de olho
nela, não pela cor, mas pelo varal improvisado, na janela, onde ficou o dia
inteiro. Ao anoitecer, ela continuava no mesmo lugar. Se fosse para secar já
estaria seca, pensei. Por que não a recolheram? Percebi que minha curiosidade
estava fora de controle e, por isso, decidi deixar a camiseta sossegada, embora
estivesse morto de vontade de saber a opinião de alguém de minha família sobre
o assunto. Eu tinha fama de ser curioso, portanto, se perguntasse à minha
filha, ouviria de novo a mesma frase: “deixa pra lá, papai. Já vem o senhor de
novo?”
Mas quem não seria capaz de observar uma camiseta vermelha
na janela o dia inteiro? Calculei que o dono da camiseta se tratava de um
torcedor de algum time de futebol ou de algum carnavalesco que exibia sua
camiseta de escola de samba, guardada durante um ano, dentro do guarda-roupa.
No dia seguinte, fiquei bastante assustado. A camiseta
vermelha estava na janela, do mesmo jeito, no mesmíssimo lugar. Achei que havia
algo de misterioso para ser explicado, antes que eu desse um ataque de histeria
e fosse internado em um manicômio qualquer. Comecei a desconfiar de mim mesmo.
Eu era apenas idoso, não velho, e sempre achei que minha cabeça funcionava bem,
mas, naquele momento, já não tinha tanta certeza. Talvez, havia começado a
caducar e ainda não percebera! Mas, que maldita camiseta seria aquela?
Saí decidido a pedir socorro à primeira pessoa que
encontrasse pela casa, a fim de desvendar aquele mistério. Minha filha já havia
saído para o trabalho e a empregada lavava a louça do café. Avistei meu neto na
varanda e pedi-lhe que viesse me ajudar, pois eu não estava me sentido bem. Ele
veio resmungando como sempre fazia quando eu lhe pedia qualquer coisa. Fomos
até a porta da cozinha, criei coragem e, meio sem jeito, fingindo não ser nada
muito importante, perguntei-lhe:
- Paulinho, está vendo aquela camiseta vermelha na janela
daquele sobradinho, lá adiante?
- Que janela? - perguntou.
- Aquela, do sobrado. Não está vendo uma camisa vermelha balançando,
balançando?
- Não vejo nenhuma camiseta vermelha, vovô. O senhor está
enxergando demais e vendo coisas de uns tempos para cá. Isto é perigoso. Também
nessa idade...
Fiquei parado, triste e desiludido. Eu andava vendo coisas
ultimamente. Outro dia vi um gambá no muro; era um gato. Cumprimentei o soldado
José; era o sargento Oliveira. Antes, podia jurar que minha cabeça funcionava
muito bem, mas, agora, comecei a duvidar.
Eu não estava preparado para aceitar chacotas e conviver com
as cobranças do tempo, as deficiências da idade,. Enfim, eu não admitia ser um
octogenário inútil, caduco, imprestável.
Durante o almoço, percebi que meu neto estava aflito para
falar sobre a camiseta do sobradinho. Então, passei-lhe um olhar de cobra
venenosa e ele se conteve, mas advertiu minha filha de que ela deveria
levar-me ao médico, pois achava que, na minha idade, era urgente uma consulta.
- Vovô está treslendo, meio lelé. Eu acho — disse ele.
Fiquei quieto, não disse nada, à espera da contestação de
minha filha, mas ela parou de comer, olhou-me com ternura, aprovou a ideia e se
dispôs a marcar um exame com um neurologista. Foi duro constatar que minha
família desconfiava de minhas faculdades mentais, mas, no fundo, não era isto
que eu queria?
E a camiseta vermelha? Quanto tempo eu aguentaria a visão
que me atormentava dia e noite, sem poder desvendar aquele mistério?
No dia marcado para a consulta, entramos no carro e rumamos
para o consultório do neurologista. Durante o percurso, meu neto resolveu
antecipar o exame e começou a me testar, digo, me tentar:
- Vovô, que rua é esta? Aquela é a igreja de São Bento ou a
de São Francisco? Meu colégio fica para cá ou para lá?
Achei suas perguntas uma falta de respeito e já ia
chamar-lhe a atenção quando minha filha se antecipou e passou-lhe uma
escaramuça de primeira. Coitado do Paulinho! Depois de me pedir desculpas,
encolheu-se no banco de trás e não deu nem mais uma palavra. O pior era que eu
não saberia responder a nenhuma de suas perguntas, pois há muito tempo, não
passava por aquela parte da cidade e seria mais uma demonstração de que minha
cabeça estava em péssimo estado de conservação.
No consultório, o médico deu início aos exames de rotina:
mediu a pressão, auscultou-me os pulmões e o coração, revirou-me as pálpebras,
olhou a língua e a garganta. Depois, pegou um martelo e bateu em meus joelhos
com força. Dei um pulo na cadeira e vi que ele gostou, mas eu não achei graça
nenhuma. Fiquei de pé para algumas palhaçadas: “Levante a mão esquerda,
equilibre-se em uma perna só, mostre-me a orelha direita e a esquerda”. Eu
obedecia às suas ordens como um robô japonês e já ia reclamar da incômoda
ginástica, quando ele, amavelmente, deu-me um tapinha nas costas e mandou que
me assentasse, naturalmente, para o veredicto final. Pela sua fisionomia calma
e satisfeita, percebi que ia sair livre de qualquer culpa na minha saúde. Então,
confessei-lhe que andava vendo coisas estranhas, trocando gambá por gato e
soldado por sargento. Falei sobre a camiseta vermelha do sobradinho que só era
vista por mim e afirmei-lhe que estava á beira da loucura. Ele não levou minhas
queixas a sério e disse ser perfeitamente normal esses enganos na minha idade.
Aconselhou-me a observar melhor antes de tirar conclusões, fazer pequenas caminhadas
pelo bairro e cuidar da alimentação. Antes de sair, ele quis falar com minha
filha. Pedi-lhe que não dissesse nada a ela a respeito de minhas visões para
não ficar preocupada e passar a me vigiar dia e noite.
Na volta, perguntei-lhe se estava tudo bem comigo. Disse -
lhe que eu não havia gostado nem um pouco da consulta porque ele não me dera
muita atenção e não me levara a sério. Minha filha, como sempre, não poupou
esforços para me acalmar. Eu não tinha nada grave, mas seria bom procurar um
oculista. Protestei, argumentando não ter dinheiro para tantas consultas, que
minha aposentadoria, em breve, iria virar salário mínimo e meu plano de saúde
não me garantia quase nada. Ela me afirmou que não seria por falta de recursos
que eu deixaria de ir ao oculista. Já fazia muitos anos que eu usava os mesmos
óculos e, depois dos oitenta, é comum ter catarata. Fiquei comovido pela
preocupação de minha filha e já ia agradecer quando Paulinho saiu-se com esta:
- Eu quero ajudar o vovô. De hoje em diante o senhor não
precisa me dar os cinquenta centavos do picolé. De cinquenta em cinquenta...
Tratei de mudar de assunto a fim de não dar oportunidade a
meu neto de falar sobre a camiseta vermelha. Foi em vão. Parece que, de
propósito, ele resmungou:
- Eu sei que o senhor anda vendo coisas esquisitas, não é
verdade, vovô? E aquela história de camiseta ver...
Interrompi sua pergunta, virei para trás e fulminei-o com um
olhar de cachorro bravo. Ele me entendeu e passou o resto do trajeto em
silêncio. Preocupada na direção do carro, minha filha nada percebeu e o assunto
foi encerrado.
Ao entrar em casa, fui direto à porta da cozinha, antes de
ir ao banheiro, tal era a minha aflição e curiosidade. Lá estava ela, do mesmo
jeito, tremulando como uma bandeira ameaçadora de piratas. Absorto pela visão
aterradora, nem percebi a chegada do Paulinho que, cheio de malícia, falou
baixinho:
- Aí, vovô, procurando a camiseta, não é? O senhor não
desiste dessa história!
Assustado, repreendi-o mais baixo ainda.
- Quieto, menino tagarela. Não vê que sua mãe está ali na
copa? Deixe-me em paz! Vá lavar as mãos para o lanche. Vá logo!
Durante o lanche, ficou resolvido que eu iria ao oculista
assim que recebesse o pagamento de minha aposentadoria. Era minha última
esperança de me livrar daquela maldita camiseta vermelha na janela do
sobradinho.
Não admitia estar fraco de ideia, sei lá, de miolo mole,
como insinuava meu neto. Agarrei-me à possibilidade de ter mesmo a catarata
para conseguir esperar o dia da consulta. Prometi a mim mesmo não chegar à
porta da cozinha com intuito de satisfazer minha curiosidade.
Passei a frequentar a cadeira da varanda onde ficava horas e
horas lendo, pensando ou cochilando até a hora das novelas. Os dias tornaram-se
mais longos, quase insuportáveis. Paulinho, que não era bobo, percebeu minha
mudança de hábitos e, uma noite, assentou-se bem perto de mim e cochichou:
- Vovô, não fica nervoso. Mamãe já marcou a consulta. Aposto
que é só uma operaçãozinha de nada e o senhor nunca mais vai ver aquela
camiseta, está bem?
Quinze dia depois, fui submetido a uma cirurgia de catarata.
Fiquei algum tempo de “quarentena”, à espera dos novos óculos como um náufrago
perdido em alto mar, à espera de um navio salvador que o livrasse dos tormentos
da fome, da sede e da impiedade do sol.
Finalmente, uma bela tarde, minha filha, ao chegar do
trabalho, trouxe a caixinha com meu socorro visual. Ela e meu neto fizeram
questão de presenciar o teste. Eu não reclamei por educação, mas detesto ser
observado e analisado, porque não sou mais um galã e meu nariz é maior que o
desejado.
Meio sem jeito, coloquei os óculos diante do espelho e
fiquei parado sem saber o que dizer, tentando enxergar meu rosto e verificar o
resultado da cirurgia. Esperei que um deles dissesse alguma palavra e não sabia
mais o que fazer, se olhava de lá para cá, de cima para baixo. Nada acontecia,
e o silêncio era total para meu desespero e aflição. Finalmente, meu neto
resolveu dar o ar da graça e disse:
- Ó, vovô! Legal! O senhor está parecendo o Rui Barbosa!
Paulinho sempre me constrangia por seus palpites maliciosos.
Minha filha, mais interessada na qualidade de minha visão que em minha
aparência, sugeriu que fôssemos até a janela para que eu pudesse ver à
distância.
- Janela, não – replicou meu esperto netinho. Vamos à porta
da cozinha. É melhor. O senhor pode ver o sobradinho e aquela cami...
Antes de ela terminar a frase, saí depressa, seguido por
minha filha, esbarrando nas cadeiras, tropeçando no tapete, ansioso pelo
momento de provar que eu não estava maluco nem tampouco com a mente deteriorada
pela idade.
Paramos na soleira da porta, os
três, mudos e apreensivos. Vi o sobradinho e procurei a camiseta vermelha.
Minha filha, que de nada sabia, perguntou-me se eu estava enxergando melhor,
mas meu neto, percebendo minha desilusão, entrou na conversa e saiu-se com
esta:
- Vovô, está vendo as janelas do sobradinho? O que o senhor
está vendo em uma delas? É a mesma coisa que o senhor viu naquele dia?
Eu estava em tempo de desmaiar de tanta felicidade. Minhas
pernas tremiam e meu coração batia descompassado, provocando-me um pouco de
falta de ar. Foi com grande alegria e alívio que lhe respondi:
- Não, Paulinho. Deus seja bendito! Quer mesmo saber o que
vejo lá na janela do sobradinho? Agora estou vendo um lençol vermelho
balançando pra lá e pra cá. Meu Deus! Como eu estava cego!
Meu neto explodiu numa sonora gargalhada e correu para o
quintal quase morto de tanto rir. Minha filha, assustada, abraçou-me
ternamente, afagou-me a cabeça e, desconsolada, disse:
- Não ligue para o Paulinho, pai. Ele anda impossível. Sua
visão está ainda bem boa. O senhor quase acertou. Aquilo não é lençol, pai. É
uma cortininha vermelha, esquisita, que está lá há muito tempo. De longe, para
quem não enxerga bem, eu juro que até parece uma camiseta vermelha!
Nídia Maria da Costa Reis
21
/ 07 /2007
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Nídia Maria da Costa Reis - Educadora, escritora, soma mais
de cem pequenas histórias e poemas catalogados, além da coleção 12
provérbios e suas histórias que chegou à quarta edição e concorreu ao
Prêmio Jabuti de Literatura. Aventuras de Gui Omar é seu trabalho mais recente.
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