3 de Maio de 2020
Concílio de Trento – Anônimo, séc. XVI. Museu do
Louvre, Paris.
Padre David Francisquini
Pergunta — Devido à
ameaça de epidemia do coronavírus, o bispo da minha diocese impôs que a Sagrada
Comunhão seja distribuída exclusivamente na mão dos fiéis, e não mais na boca. Chama-me
a atenção que, no mesmo comunicado, proíbe-se o costumeiro aperto de mão na
saudação da paz. Se o contato com a mão transmite o vírus, seria lógico proibir
também a comunhão na mão, porque o padre poderia estar contaminado, não é? Essa
contradição me leva a suspeitar que alguns bispos estejam querendo aproveitar a
crise sanitária para tentar acabar com a distribuição da comunhão na boca, que
é o modo tradicional. Há muitos anos sou “mal visto” por vários sacerdotes, por
não receber a comunhão na mão, e tenho sido interpelado algumas vezes para
“fazer como os demais”. Esses padres alegam que na Igreja primitiva se
comungava desse jeito, e que o fato de não se permitir aos fiéis tocar na
hóstia, como se fazia antes, estabelecia uma distinção excessiva entre os
leigos e o clero, dando a entender que os padres eram virtuosos e os fiéis eram
pecadores. Gostaria de saber se isso é verdade, e qual é a legislação da Igreja
sobre a distribuição da comunhão.
Resposta — O Concílio
de Trento declarou que o costume de o sacerdote celebrante comungar de suas
próprias mãos, e depois distribuir a hóstia aos fiéis, é uma tradição
apostólica (sess. 13, c. 8). São Basílio (330-379) informou que só era
permitido receber a comunhão das próprias mãos em tempos de perseguição ou no
caso dos monges do deserto — ou seja, quando não havia nem sacerdote nem
diácono para dar a comunhão (Carta 93). Com a paz de Constantino essa exceção
acabou, pois foi permitido à Igreja sair das catacumbas. Provavelmente isso era
desrespeitado em alguns lugares e cometiam-se abusos, porque no ano 650 o
Concílio de Rouen definiu: “Não coloques a Eucaristia nas mãos de um
leigo ou de uma leiga, mas unicamente na sua boca”.
De fato, à medida que a Igreja foi tomando consciência de quão augusto é
o tesouro que Nosso Senhor lhe deixou com o Sacramento da Eucaristia — seu
Corpo e Sangue realmente presentes nas espécies consagradas do pão e do vinho
—, Ela foi aos poucos aperfeiçoando seu modo de celebrar a Missa, a assiduidade
e o modo de distribuir a Sagrada Comunhão, assim como de conservar e
transportar o Santíssimo Sacramento. Basta citar, por exemplo, que os primeiros
cristãos celebravam a Missa no mesmo local da refeição fraterna que tomavam em
comum (ágape), e logo depois de terem comido. Ainda no século V, São Paulino de
Nola testemunha a existência desse tipo de reuniões à mesa, não inteiramente
separadas da celebração; e foi somente no segundo milênio que se tornou mais
rígida a regra do jejum eucarístico prévio à recepção da Sagrada Comunhão.
Certeza da presença de Jesus na hóstia santa
Concomitantemente foi se impondo o costume de dar a comunhão na boca,
pela certeza de que o Corpo de Nosso Senhor estava tão presente numa pequena
fração quanto numa hóstia inteira, como belamente escreveu Santo Tomás de
Aquino no hino Lauda Sion: “Quando a hóstia é dividida, não
vaciles, mas recorda que o Senhor encontra-se todo debaixo do fragmento, tanto
quanto na hóstia inteira”. Ora, durante a distribuição da Sagrada Comunhão
é frequente separarem-se da hóstia pequenos fragmentos, e é por isso que o coroinha
deve sempre colocar a patena sob o queixo do comungante, a fim de recolher os
fragmentos que eventualmente se desprendem da hóstia. Voltando ao altar, o
sacerdote limpa a patena, derramando esses minúsculos fragmentos dentro do
cálice a ser purificado mediante as abluções.
Essa consciência crescente da presença miraculosa de Jesus na hóstia, e
da necessidade de recebê-Lo com a reverência devida, levou também a Igreja a
impor aos fiéis recebê-Lo de joelhos, em sinal de adoração. É um sinal exterior
para prestar-Lhe homenagem e saudá-Lo com o nosso corpo, num gesto de
humildade. A recepção na boca é também um sinal de infância espiritual, pois da
mesma forma que as crianças abrem a boca para receber o alimento, abrimos a
boca para receber da mão do sacerdote o nosso alimento espiritual. E o
sacerdote celebra a Missa “in persona Christi”, ou seja, ao
celebrar, assume a própria pessoa de Cristo. Esses gestos de humilhação se
fazem, portanto, diante do próprio Deus; e longe de rebaixar, engrandecem quem
os pratica, porque são atos de adoração e de reverência a Deus.
Cumprir com santo zelo os deveres religiosos
O inexplicável é que, depois do Concílio
Vaticano
II, a comunhão na mão e outros
modos de proceder protestante tenham
começado a
se infiltrar na Igreja
Católica.
No século VI, na Igreja de Roma, a santa hóstia já era depositada
diretamente na boca dos fiéis, segundo o testemunho de São Gregório Magno ao
contar um milagre de Santo Agapito (Diálogos, livro 3°). E foi na Idade
Média que se generalizou a recepção de joelhos, como afirma São Columbano,
monge irlandês que cristianizou os escoceses.
A partir da Idade Média, os fiéis tiraram grande proveito espiritual
desses gestos de reverência diante das espécies eucarísticas. Basta pensar na
instituição da festa de Corpus Christi pelo Papa Urbano IV, em
1264. O primeiro grande fruto desse aperfeiçoamento no trato da Eucaristia foi
o aumento da fé na Presença Real de Nosso Senhor no pão e no vinho consagrados,
que se transformam no Corpo e no Sangue do Salvador. O segundo grande fruto foi
o aumento da piedade, sendo reconhecido que a perfeição da virtude da religião
produz nas almas um afeto filial para com Deus e uma terna devoção às Pessoas
divinas, aos santos, à Igreja, às Sagradas Escrituras, etc., levando-as a
cumprir com santo zelo os deveres religiosos.
Infiltração de costumes protestantes na Igreja
Esse movimento de fervor foi crescendo na Igreja Católica ao longo dos
séculos e marcadamente a partir do século XVI em oposição às heresias de Lutero
e seus sequazes.
Todas as seitas protestantes negam a transubstanciação, ou seja, negam
que o pão e o vinho tornam-se o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor, perdendo sua
substância e ficando deles somente os acidentes. Algumas seitas dizem que a
presença de Cristo é apenas espiritual, enquanto outras sustentam que, durante
a cerimônia, seu Corpo e Sangue se unem à matéria das espécies, mas a
substância do pão e do vinho permanece íntegra. Negam também o caráter de
sacrifício da Santa Missa; e como consequência, negam o sacerdócio como uma
ordem sagrada para realizar o sacrifício in persona Christi. Daí a
equiparação dos fiéis aos pastores, que são meros pregadores.
O resultado da disseminação dessas heresias foi a transformação do altar
numa mesa, colocada na frente ou no meio dos participantes, e o fazerem uma
fila para ir pegar eles mesmos com a mão o pão e o vinho diretamente sobre a
mesa. Na óptica herética deles, tudo isso se explica porque o culto é
principalmente uma pregação; e a “comunhão” é simplesmente partilhar um pão e
vinho não transubstanciados onde haveria uma vaga presença espiritual de
Cristo.
O inexplicável é que, depois do Concílio Vaticano II, muito desse modo
de proceder protestante tenha começado a se infiltrar na Igreja Católica.
O documento crucial para o abandono da maneira tradicional de receber a
Comunhão foi a Instrução Memoriale Domini, publicada pela
Sagrada Congregação para o Culto divino em 29 de maio de 1969. Ela explicava
que um número reduzido de bispos havia pedido a admissão da comunhão na mão;
mas, tendo sido interrogados todos os bispos do mundo pelo Papa Paulo VI,
apenas um quarto deles aprovaram essa novidade.
A Instrução acrescentava que, em consequência do que se disse
acima, “o Santo Padre decidiu não mudar a forma existente de
administrar a Sagrada Comunhão aos fiéis”. Porém aduzia duas linhas
adiante: “Onde um uso contrário, o de colocar a Sagrada Comunhão nas
mãos prevalece”(?!), as Conferências episcopais devem
avaliar “qualquer circunstância especial que possa existir”,
e “devem tomar quaisquer decisões” para “regular as
situações” (ou seja, regularizar os abusos!).
O caráter insincero da Instrução ficou claro numa nota anexa, na qual se
dizia que “o rito da comunhão nas mãos deve ser introduzido com
discernimento”, “gradualmente”, “começando com grupos mais instruídos e mais
bem preparados” por meio de “uma adequada catequese” que “prepare
o caminho”.
Como se tratava apenas de um indulto, as Conferências episcopais deviam
aprovar uma resolução por maioria de 2/3, fazendo um pedido à Santa Sé. A
imensa maioria acabou introduzindo essa forma de distribuição, de maneira que
se tornou o costume prevalente na Igreja latina nos cinco continentes.
A formulação mais recente da legalização dessa anomalia é contida
na Instrução Geral do Missal Romano de 2002: “Não é
permitido que os próprios fiéis tomem, por si mesmos, o pão consagrado nem o
cálice sagrado, e menos ainda que o passem entre si, de mão em mão. Os fiéis
comungam de joelhos ou de pé, segundo a determinação da Conferência Episcopal.
Quando comungam de pé, recomenda-se que, antes de receberem o Sacramento, façam
a devida reverência, estabelecida pelas mesmas normas”. E mais
adiante: “Se a Comunhão for distribuída unicamente sob a espécie do
pão, o sacerdote levanta um pouco a hóstia e, mostrando-a a cada um dos
comungantes, diz: O Corpo de Cristo ou Corpus Christi. O
comungante responde: Amém, e recebe o Sacramento na boca; ou, onde for
permitido, na mão, conforme preferir”.
A liberdade de escolha foi reiterada pela Congregação para o Culto
divino em sua Instrução Redemptionis Sacramentum, de 2004, a qual
diz, de maneira assaz enviesada: “Ainda que todo fiel tenha sempre
direito a escolher se deseja receber a sagrada Comunhão na boca, se o que vai
comungar quer receber na mão o Sacramento, nos lugares onde Conferência de
Bispos o haja permitido, com a confirmação da Sé apostólica, deve-se
administrar-lhe a sagrada hóstia”.
Argumentação contra a comunhão na mão
Dom Athanasius Schneider,bispo auxiliar de Astana
(Cazaquistão)
Dois bispos se têm destacado nos esforços para eliminar o abuso da
comunhão na mão, argumentando que um “indulto” foi transformado em regra geral;
e os que respeitam a regra litúrgica passaram a ser tratados como indultados.
Dom Juan Rodolfo Laise, recentemente falecido, proibiu a comunhão na mão em sua
diocese de San Luis (Argentina); e Dom Athanasius Schneider, bispo auxiliar de
Astana (Cazaquistão), escreveu dois livros sobre o assunto e promoveu uma resolução
de sua Conferência episcopal, proibindo a comunhão na mão em toda a região.
No livro Corpus Christi, a comunhão na mão no coração da crise
da Igreja, Dom Schneider declara que em nossos dias essa prática é “a
mais profunda laceração do Corpo Místico da Igreja de Cristo”, porque
acarreta quatro consequências, cada qual mais grave que a outra:
● Minimiza os gestos de adoração visível;
● Nas crianças e nos adolescentes que não conheceram o modo tradicional
de recepção, cria a ideia de que a Eucaristia é um alimento comum e apenas um
símbolo;
● Permite perdas importantes de parcelas de hóstias, que caem por terra
e são profanadas involuntariamente;
● Favorece o roubo de hóstias para atos sacrílegos.
Além do que foi exposto acima, pode-se ainda acrescentar algo a mais: é
que essa prática leva os fiéis à indiferença e à perda da fé, pois aquelas
mesmas mãos que depositaram o dinheiro na coleta vão tocar a hóstia consagrada.
Aos poucos, isso induz a pessoa a colocar o dinheiro e a hóstia no mesmo nível,
relativizando o valor infinito da Sagrada Eucaristia.
Devemos ressaltar que Nosso Senhor Jesus Cristo, realmente presente e em
pessoa, é a vítima dessas quatro atitudes deploráveis.
Em resposta àqueles que dizem que a obrigação de receber a comunhão na
boca violaria seus direitos de “cristão adulto”, Dom Athanasius contesta:
“Esses supostos direitos violam os direitos de Cristo, o único Santo, o
Rei dos Reis: Ele tem o direito de receber a excelência das honras divinas,
mesmo na pequena e santa hóstia. Todas as razões em favor da prática da
comunhão em pé e na mão perdem toda consistência diante da gravidade da
situação evidente de minimização do respeito e da sacralidade, diante do
descuido pelas parcelas eucarísticas que caem por terra e diante do fenômeno
crescente do roubo de hóstias consagradas.
“Acima de tudo, qualquer argumento em favor da manutenção da prática da
comunhão na mão perde todo fundamento em consideração da diminuição (para não
dizer desaparecimento) da integridade da fé católica na Presença Real e na
transubstanciação. Tal prática moderna, que jamais existiu na Igreja sob essa
forma exterior concreta, acaba incontestavelmente por enfraquecer a plenitude
da fé católica na Eucaristia”.
A lição da aparição do Anjo aos pastorinhos de Fátima
O Anjo apareceu-nos pela
terceira vez, trazendo na
mão um cálice e sobre ele
uma Hóstia, da qual
caíam dentro do cálice
algumas
gotas de Sangue.
[Foto: Frederico Viotti]
Como recurso de contraste salutar, convém lembrar a terceira aparição do
anjo aos três pastorinhos de Fátima. De um lado ela nos mostra a reverência que
se deve ter em relação à Sagrada Eucaristia; e de outro, o quanto Nosso Senhor
é ofendido pelos sacrilégios. Eis o relato da Irmã Lúcia:
“O Anjo apareceu-nos pela terceira vez, trazendo na mão um cálice e
sobre ele uma Hóstia, da qual caíam dentro do cálice algumas gotas de Sangue.
Deixando o cálice e a Hóstia suspensos no ar, prostrou-se em terra e repetiu
três vezes a oração: ‘Santíssima Trindade, Pai, Filho, Espírito Santo,
adoro-Vos profundamente e ofereço-Vos o preciosíssimo Corpo, Sangue, Alma e
Divindade de Jesus Cristo, presente em todos os sacrários da Terra, em
reparação pelos ultrajes, sacrilégios e indiferenças com que Ele mesmo é
ofendido. E pelos méritos infinitos do Seu Santíssimo Coração e do Coração
Imaculado de Maria, peço-Vos a conversão dos pobres pecadores’.
“Depois, levantando-se, tomou de novo nas mãos o cálice e a Hóstia e
deu-me a Hóstia a mim; e o que continha o cálice, deu-o a beber à Jacinta e ao
Francisco, dizendo ao mesmo tempo: ‘Tomai e bebei o Corpo e Sangue de Jesus
Cristo, horrivelmente ultrajado pelos homens ingratos. Reparai os seus crimes e
consolai o vosso Deus’.
“De novo se prostrou em terra e repetiu conosco mais três vezes a mesma
oração: ‘ Santíssima Trindade… etc’. E desapareceu”.
Peçamos a Nossa Senhora de Fátima que obtenha o quanto antes de seu
divino Filho ser fechada na Igreja, que é o seu Corpo Místico, essa chaga da
comunhão na mão, sintoma de tanta indiferença e causa de incontáveis ultrajes.
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