História de Laura Palmer
Por Cyro de Mattos
Ela
nunca soubera o tempo de escutar a própria voz e se sentir em disponibilidade
de si mesma. Pouco a pouco, uma realidade foi sendo constatada em seus ângulos desconhecidos.
Respirava entre pessoas que se encontravam para manter um ritmo sem
qualquer atrativo humano especial, apenas para alimentar certo rótulo
social e econômico, exibido com enorme satisfação como um trunfo que poucos na
vida conseguem. Perfis da vitória nos seus acentos circunflexos, gestos
redondos que se intumesciam de prazer, na mesa a prata castiça, iguarias e
bebidas raras. Os dias desfilavam sob o peso de uma mentira constante. Por
acaso existirá no mundo algo mais triste do que a solidão em família com as
palavras encobrindo verdades e ferindo como faca? Ela tinha tudo em suas mãos,
mas o sonho de viver livre era um passo que parecia impossível de ser dado. Um
pássaro que não voava, com o seu canto prisioneiro guardado numa gaiola de
ouro era mesmo uma coisa sem sentido. E o dissabor da realidade desse pássaro
artificial atingiu o ponto máximo quando ela percebeu que os filhos não
precisavam mais dela, e o marido, o banqueiro mais famoso da cidade,
fechado no mundo dos negócios, era uma pedra que se lançara para o fundo de um
poço.
Um
grito então aconteceu. Como algo especial que se aqueceu em segredo e apareceu
na paisagem para se propagar com os dias plenos de ardor. Laura Palmer, senhora
de alta sociedade, mãe de três filhos, todos casados, em romance com Clarindo
Mali, compositor negro, cantor do bloco Olodum, que neste ano vai apresentar
durante o carnaval o tema “Dogons, o povo das estrelas”, e mostrará como se deu
a criação, a origem da vida, do nosso planeta e do universo. O bloco irá
mostrar no desfile dessa temporada a importância do respeito às águas, o
amor às estrelas, de onde viemos e para onde vamos voltar um dia. Milionária
divorciada grava o seu primeiro CD e entra com surpreendente sucesso no
mundo apaixonante da música popular. E fofocas e comentários e disse me
disse. Ela assim conheceu que aquele grito deveria ter sido dado muito antes.
Aos dezessete anos talvez. Na plena força da idade quando o coração pulsa com o
fulgor maravilhoso de um sol, a irradiar luz por todos os recantos. É bom
caminhar assim e sorrir e chorar. Esta a vida do ar, do amar e do sonhar,
pensou.
Na
medida em que se via penetrada das cores da realidade nova, ela se sentia
levada por ondas que iam deixando para trás cenas de uma alma saturada de
coisas insignificantes. Havia circulado naquele tempo habitado por rostos sem
brilho, beijos sem afeto, dedos sem entrelaço. Que droga, aquela havia sido a
sua estrada? Quanta insinceridade, meu Deus, as pessoas haviam colocado nisso
tudo, nessa estrada horrível, a essa altura comprida. Pessoas de seu círculo
formaram logo opiniões. Quiseram tomar detalhes, reincidiram nas visitas,
mostraram-se inconformadas com aquela mudança súbita. No fundo mesmo
ficaram revoltadas com a altivez acentuada que surgiu dos traços
harmoniosos de seu rosto. Alguns parentes, não conseguindo ferir os encobertos
objetivos, utilizaram-se das armas do desprezo, coação e censura.
A
propósito, há poucos dias sua mãe fez a seguinte observação: Depois de velha,
você entendeu de ser artista... E ela, agora eu sou livre, l-i-v-r-e. E seu
ex-marido, o banqueiro Carlos, deixou um pouco de lado o mundo dos sucessos
econômicos e resolveu também interferir. É essa a maneira de você retribuir
aos filhos o amor que eles sempre dedicaram a você? E ela: Na minha
maneira de ser nada mudou para eles, apenas agora eu estou vivendo. E os filhos
por sua vez disseram que não acreditavam no que estava sendo publicado nas
colunas sociais dos jornais e revistas. Esses comentários chocam muito. E ela,
não vendo qualquer motivo que justificasse esconder a verdade, procurou
deixá-los a par de tudo. Vocês não devem sofrer por isso, gostaria
de dizer a vocês o inverso do que eu ouvi dos meus pais, o oposto de tudo o que
eu aprendi com eles. Concluindo: Sinto-me na vida. E mil coisas agradáveis,
marcantes, ela passou a conhecer.
Aconteceu
ela cruzar inúmeros caminhos, descobrir-se com uma infinidade de pessoas, cuja
beleza consistia em fazer da vida uma realidade simples, espontânea, habitada
nos seus movimentos cotidianos à vontade por ondas de calor e brilho forte.. E
recentemente lhe tocou uma emoção grande quando aquele rosto tão jovem
aproximou-se dela e perguntou qual seria o título do seu livro de memórias e ela,
irradiando serenidade e alegria, sem hesitar um minuto sequer, respondeu:
Viver.
Cyro de Mattos - Ficcionista e poeta. Publicado em inglês,
francês, italiano, espanhol, alemão, dinamarquês, russo. Premiado no Brasil,
Portugal, Itália e México. É membro titular da Academia de Letras da Bahia e da
Academia de Letras de Ilhéus. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual
de Santa Cruz-UESC.
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