22 de março de 2020
O coronavírus é um castigo divino? Considerações políticas,
históricas e teológicas
Roberto de Mattei
O tema da minha palestra é Os novos cenários na
Itália e na Europa com e após o coronavírus.
Não falarei sobre esse tópico do ponto de vista médico ou
científico, pois não tenho competência nesses campos.
Em vez disso, tratarei do assunto sob outros três pontos de
vista: do estudioso das ciências políticas e sociais; do historiador; e do
ponto de vista do filósofo da História.
O estudo das ciências sociais
As ciências políticas e sociais são aquelas que estudam o
comportamento do homem em seu contexto social, político e geopolítico. Desse
ponto de vista, não me pergunto sobre as origens do coronavírus e sua natureza,
mas sobre as consequências sociais que ele está tendo e terá.
Uma epidemia é a disseminação em escala nacional ou mundial
(neste caso, é chamada de pandemia) de uma doença infecciosa que afeta um
grande número de indivíduos de uma determinada população em um período muito
curto de tempo.
O coronavírus, renomeado Covid-19 pela OMS, é uma doença
infecciosa que começou a se espalhar a partir da China. A Itália é
aparentemente o país ocidental mais afetado.
Por que a Itália está em quarentena hoje? Porque, como os
analistas entenderam desde o primeiro momento, o problema do coronavírus não é
tanto a taxa de letalidade da doença, mas a rapidez da infecção na população.
Todos concordam que a letalidade da doença em si não é muito alta. Um paciente
pode se recuperar se for assistido por pessoal especializado em unidades de saúde
bem equipadas. Mas se, devido à rapidez da infecção, que pode afetar milhões de
pessoas simultaneamente, o número de pacientes for galopante, faltarão
instalações e funcionários: nesse caso os pacientes morrem porque são privados
dos cuidados necessários. Para tratar casos graves, são necessários cuidados
intensivos para ventilar os pulmões. Se esse suporte estiver ausente, os
pacientes morrem. Se o número de pessoas infectadas aumentar os hospitais não
poderão mais oferecer tratamento intensivo a todos e um número crescente de
pacientes sucumbirá.
As projeções epidemiológicas são inexoráveise justificam
as precauções tomadas. “Se ficar descontrolado, o coronavírus pode afetar
toda a população italiana; mas suponhamos que no final apenas 30% sejam
infectados, cerca de 20 milhões. Se desses — contando por baixo
— uns 10% entrar em crise, isso significa que, sem cuidados
intensivos, eles estarão destinados a sucumbir. Seriam dois milhões
de mortes diretas, além de todas as mortes indiretas resultantes do colapso
do sistema de saúde e da ordem social e econômica resultante”[1].
O colapso do sistema de saúde também tem outras
consequências. O primeiro é o colapso do sistema de produção do país.
As crises econômicas geralmente surgem da falta de demanda
ou de oferta. Mas se aqueles que desejam consumir devem permanecer em casa e as
lojas estão fechadas e aqueles que poderiam oferecer não podem levar seus
produtos aos clientes porque as operações de logística, o transporte de
mercadorias e os pontos de venda estão em crise, as cadeias de
suprimentos–as supply chains colapsam. Os bancos centrais não
conseguem salvar a situação: “A crise pós-coronavírus não tem solução
monetária“, escreve Maurizio Ricci em La Repubblica, em 28 de fevereiro.
Stefano Feltri, por sua vez, observa: “Receitas tipicamente keynesianas
— criação de empregos e demanda artificial com dinheiro público — não são
viáveis quando os trabalhadores não saem de casa, os caminhões não circulam,
os estádios estão fechados e as pessoas não reservam viagens de férias ou de
negócios porque em casa há doentes ou temem infecções. Além de evitar crises de
liquidez para as empresas, suspendendo os pagamentos de impostos e de juros aos
bancos, a política é impotente. Um decreto do governo não é suficiente para
reorganizar a cadeia de suprimentos”[2].
A expressão “tempestade perfeita” foi criada há vários anos
pelo economista Nouriel Roubini para indicar uma mistura de condições
financeiras que poderiam levar a um colapso do mercado. “Haverá uma
recessão global devido ao coronavírus”, diz Nouriel Roubini,
acrescentando: “A crise explodirá e resultará em um desastre”[3].
As previsões de Roubini foram confirmadas pela queda nos preços do petróleo
após o fracasso de um acordo na OPEP, com a Arábia Saudita desafiando a Rússia
e decidindo aumentar a produção e baixar os preços. Provavelmente
serão ratificadas pelo desdobramento de eventos.
O ponto fraco da globalização é a “interconexão”, a palavra
talismã do nosso tempo, da economia à religião. A Querida Amazônia do
Papa Francisco é um hino à interconexão. Mas o sistema global é frágil
precisamente porque está muito interconectado. E o sistema de distribuição de
produtos é uma das cadeias dessa interconexão econômica.
Não se trata de mercados, mas da economia real. Não apenas
as finanças, mas também a indústria, o comércio e a agricultura — ou seja, os
pilares da economia de um país — podem entrar em colapso se o sistema de
produção e distribuição estiver em crise.
Mas há outro ponto que começa a ser vislumbrado: não é
apenas o colapso do sistema de saúde, não é só a possibilidade de uma rachadura
econômica, mas também pode haver um colapso do Estado e da autoridade pública;
em uma palavra, a anarquia social. As prisões em revolta na Itália indicam uma
direção,
As epidemias têm consequências psicológicas e sociais pelo
pânico que podem causar. A Psicologia Social nasceu entre o final do século XIX
e o início do século XX. Um de seus primeiros expoentes é Gustave Le Bon
(1841-1931), autor de um famoso livro intitulado Psicologia das Massas (1895).
Analisando o comportamento coletivo, Le Bon explica como no
meio da multidão o indivíduo passa por uma mudança psicológica pela qual
sentimentos e paixões são transmitidos de um indivíduo para outro “por
contágio”, como nas doenças infecciosas. A moderna teoria do contágio social,
inspirada em Le Bon, explica como, protegido no anonimato da massa, até o
indivíduo mais pacífico pode se tornar agressivo, agindo por imitação ou
sugestão. O pânico é um daqueles sentimentos transmitidos por contágio social,
como aconteceu durante a Revolução Francesa no período chamado de “Grande Medo”[4].
Se à crise econômica se soma a crise da saúde, uma onda
descontrolada de pânico pode desencadear impulsos violentos na multidão. O
Estado é substituído por tribos, gangues, especialmente nos subúrbios de
grandes centros urbanos. A anarquia tem seus agentes, e a guerra social, que
foi teorizada pelo Fórum de São Paulo (uma confederação de organizações
ultraesquerdistas latino-americanas), já é praticada na Bolívia e no Chile,
Venezuela e Equador, e pode em breve expandir-se para a Europa.
Esse processo revolucionário certamente corresponde ao
projeto dos lobbies globalistas, os “mestres do caos”, como os defineo
professor Renato Cristin[5].
Mas, se isso é verdade, também é verdade que quem sai derrotado por essa crise
é precisamente a utopia da globalização, apresentada como o principal caminho
para levar à unificação da humanidade. De fato, a globalização destrói o espaço
e pulveriza as distâncias: hoje, pelo contrário, a regra para escapar da
epidemia é a distância social, o isolamento do indivíduo. A quarentena se opõe
diametralmente à “Sociedade Aberta” defendida por George Soros. A concepção do
homem como um relacionamento, típica de certo personalismo filosófico, entra em
ocaso.
O Papa Francisco, após o fracasso da Querida Amazônia,
concentrou-se fortemente na conferência dedicada ao Pacto Global, agendada no
Vaticano para 14 de maio. A conferência, no entanto, foi adiada e ela não
apenas se afasta no tempo, mas suas premissas ideológicas se dissolvem. O
coronavírus nos traz de volta à realidade. Não é o fim das fronteiras,
anunciado após a queda do Muro de Berlim, é o fim do mundo sem fronteiras. Não
é o triunfo da nova ordem mundial, é o triunfo da nova desordem mundial. O
cenário político e social é o de uma sociedade que se desintegra e se decompõe.
Foi tudo planejado? É possível. Mas a História não é uma sucessão
determinística de eventos. O Mestre da História é Deus, não os mestres do caos.
É o fim da “aldeia global”. O assassino da globalização é um vírus global
chamado coronavírus.
O historiador
Um hospital nos Estados Unidos, em 1918, lotado de vítimas
da gripe espanhola.
A esta altura, o historiador se substitui ao observador
político e tenta ver as coisas em uma perspectiva de longa distância. As
epidemias acompanharam a história da humanidade desde seu início até o século
XX e sempre se entrelaçaram com outros dois flagelos: guerras e crises
econômicas. A última grande epidemia — a gripe espanhola da década de 1920 [foto]
— estava intimamente ligada à Primeira Guerra Mundial e à Grande Depressão de
1929, também conhecida como the Great Crash, uma crise econômica e
financeira que abalou a economia mundial no final da década de 1920, com sérias
repercussões também na década seguinte. Esses eventos foram seguidos pela
Segunda Guerra Mundial.
Laura Spinnay é uma jornalista científica inglesa que
escreveu um livro intitulado Pale Rider: The Spanish Flu of 1918 and How
It Changed the World, traduzido como: 1918. A gripe espanhola, a pandemia
que mudou o mundo. Seu livro nos informa que entre 1918 e 1920 o vírus espanhol
infectou aproximadamente 500 milhões de pessoas, atingindo até habitantes de
ilhas remotas do Oceano Pacífico e do Oceano Ártico, causando a morte de 50 a
100 milhões de pessoas, dez vezes mais que a Primeira Guerra Mundial. A Grande
Guerra ajudou a espalhar o vírus pelo mundo. Laura Spinnay escreve: “É
difícil imaginar um mecanismo de contágio mais eficaz do que a mobilização de
grandes quantidades de tropas no auge da onda epidémica do outono, que chegaram
aos quatro cantos do planeta, onde foram recebidos por multidões festivas.
Basicamente, o que a gripe espanhola nos ensinou é que outra pandemia de gripe
é inevitável, mas se causará dez ou cem milhões de vítimas depende apenas de
como será o mundo no qual ela se desencadeará.”[6]
No mundo interconectado da globalização, a facilidade de
contágio é certamente maior do que cem anos atrás. Quem poderia negar isso?
Mas o olhar do historiador remonta mais atrás no tempo.
O século XX foi o século mais terrível da História, mas
houve outro século terrível, aquele que a historiadora Barbara Tuchman em seu
livro A Distant Mirror chama de “O calamitoso século XIV” [7].
Quero focalizar esse período histórico, que marca o fim da
Idade Média e o início da Era Moderna. Faço isso com base nos trabalhos de historiadores–
não católicos, mas sérios e objetivos em suas pesquisas.
As Rogações são procissões convocadas pela Igreja
para implorar a ajuda do Céu contra as calamidades. Nas Rogações, rezamos A
fame, peste et bello libera nos, Domine: “da fome, da peste e da guerra,
livrai-nos, Senhor”. A fome, a peste e a guerra sempre foram consideradas pelo
povo cristão como castigos de Deus. A invocação litúrgica presente na cerimônia
das Rogações — escreve o historiador Roberto Lopez — “retomou
toda a sua dramática relevância durante o século XIV”.[8] “Entre
os séculos X e XII — observa López — nenhum dos grandes flagelos que
ceifam a humanidade parece ter-se espalhado em grande proporção; nem a peste,
da qual não ouvimos falar neste período, nem a penúria, nem a guerra, que
causou um número muito pequeno de vítimas. Além disso, as potencialidades da
agricultura foram ampliadas por uma melhoria gradual do clima. Temos provas
disso no recuo das geleiras nas montanhas e dos icebergs nos mares do Norte, na
extensão da viticultura em regiões como a Inglaterra, onde hoje não é mais
praticável, na abundância de água em territórios do Saara depois recuperados
pelo deserto”[9].
Muito diferente foi a imagem do século XIV, que assistiu à
convergência de catástrofes naturais e de sérias convulsões religiosas e
políticas.
O século XIV foi um século de profunda crise religiosa:
começou com a bofetada de Anagni (1303), uma das maiores humilhações do Papado
na História; depois viu a mudança dos Papas, durante setenta anos, para a
cidade de Avignon, na França (1308-1378), e terminou entre 1378 e 1417, com os
quarenta anos do Cisma do Ocidente, no qual a Europa católica se dividiu entre
dois e depois três papas opostos entre si. Um século depois, em 1517, a
Revolução Protestante rasgou a unidade de fé do Cristianismo.
Se o século XIII havia sido um período de paz na Europa, o
século XIV foi uma era de guerra permanente. Basta pensar na “Guerra dos Cem
Anos” entre a França e a Inglaterra (1339-1452) e a invasão dos turcos ao
Império Bizantino, com a conquista de Adrianópolis em 1362.
Nesse século, a Europa experimentou uma crise
econômica devido às mudanças climáticas causadas não pelo homem, mas pelo
esfriamento. O clima da Idade Média era ameno e doce, como seus costumes. O
século XIV, pelo contrário, experimentou um forte enrijecimento das condições
climáticas.
As chuvas e inundações da primavera de 1315 resultaram em
uma fome geral que assolou a Europa inteira, especialmente as regiões
septentrionais, causando a morte de milhões de pessoas. A fome se espalhou por
toda parte. Os idosos recusavam voluntariamente a comida na esperança de que os
jovens sobrevivessem e os cronistas da época escreveram sobre muitos casos de
canibalismo.
Uma das principais consequências da fome foi a
desestruturação agrícola. Durante esse período, houve grandes movimentos de
despovoamento agrícola, caracterizados pela fuga da terra e o abandono das
aldeias; a floresta invadiu campos e vinhedos. Como consequência do abandono do
campo, houve uma redução acentuada na produtividade do solo e um depauperamento
dos rebanhos.
Se o mau tempo causa fome, isso enfraquece o corpo das
populações, abre o caminho às doenças. Os historiadores Ruggero Romano e
Alberto Tenenti mostram como no século XIV se intensificou o círculo vicioso
entre penúrias e epidemias[10].
A última grande peste havia eclodido entre 747 e 750; reapareceu quase
seiscentos anos depois, repetindo-se quatro vezes no curso de uma década.
A peste veio do Oriente e chegou a Constantinopla no outono
de 1347. Nos três anos seguintes, infectou toda a Europa até a Escandinávia e a
Polônia. É a Peste Negra [quadro ao lado] de que fala Boccaccio no Decamerão.
A Itália perdeu cerca da metade de seus habitantes. Agnolo di Tura, cronista de
Siena, reclamou que não encontrava mais ninguém para enterrar os mortos e que
ele teve que enterrar seus cinco filhos com as próprias mãos. Giovanni Villani,
um cronista florentino, foi atingido pela peste de forma tão repentina que sua
crônica parou no meio de uma frase.
A população europeia, que no início de 1300 atingira mais de
70 milhões de habitantes, após um século de guerras, epidemias e fomes desceu
para 40 milhões; portanto, diminuiu mais de um terço.
A fome, a peste e as guerras do século XIV foram
interpretadas pelo povo cristão como sinais do castigo de Deus.
Tria sunt flagella quibus dominus castigat: três são os
flagelos com os quais Deus castiga os povos: guerra, peste e fome, advertiu São
Bernardino de Siena (1380-1444)[11].
São Bernardino de Siena pertence a esse número de santos — como Catarina de
Siena, Brígida da Suécia, Vicente Ferrer, Luís Maria Grignion de Montfort — que
explicaram como, ao longo da História, os desastres naturais sempre
acompanharam as infidelidades e apostasias das nações.
Isso que aconteceu no final da Idade Média cristã parece
acontecer com as calamidades de hoje. Santos como Bernardino de Siena não atribuíram
esses eventos à atuação dos agentes do mal, mas aos pecados dos homens, tão
mais graves se forem pecados coletivos e ainda mais graves se forem tolerados
ou promovidos pelos governantes dos povos e pelas autoridades da Igreja.
O filósofo da História
Essas considerações nos introduzem no terceiro ponto de
vista sob o qual considerarei os eventos, não como sociólogo ou historiador,
mas como filósofo da História.
A Teologia e a Filosofia da História são campos de
especulação intelectual que aplicam os princípios da teologia e da filosofia a
eventos históricos. O teólogo da História é como uma águia que julga dos cimos
os eventos humanos. Grandes teólogos da História foram Santo Agostinho
(3054-430), Jacques Bénigne Bossuet (1627-1704), que foi chamado de águia de
Meaux, do nome da diocese da qual foi bispo, o conde Joseph de Maistre
(1753-1821), o marquês Juan Donoso Cortés (1809-1853), o abade de Solesmes, Dom
Guéranger (1805-1875), o professor Plinio Corrêa de Oliveira (1908-1995) e
muitos outros.
Há uma expressão bíblica que diz: Judicia Dei abyssus
multa (Salmos 35, 7): os juízos de Deus são um grande abismo. O teólogo da
História se submete a esses juízos e tenta entender-lhes a razão.
São Gregório Magno [quadro ao lado], convidando-nos a investigar
as razões da obra divina, declara: “Quem, nas obras de Deus, não descobre
a razão pela qual Deus as faz, encontrará em sua maldade e baixeza motivos
suficientes para explicar por que suas indagações são em vão”[12].
A filosofia e a teologia modernas, sob a influênciasobretudo
de Hegel, substituíram os juízos de Deus pelos da História. O princípio de que
a Igreja julga a História é invertido. De acordo com a Nouvelle théologie,
não é a Igreja que julga a História, mas a História que julga a Igreja, porque
a Igreja não transcende a História, mas é imanente, interna a ela.
Quando o cardeal Carlo Maria Martini, em sua última entrevista,
afirmou que “a Igreja está 200 anos atrasada” em relação à História,
ele tomou a História como critério de julgamento da Igreja. Quando o Papa
Francisco, em sua saudação de Natal de 21 de dezembro de 2019, faz suas as
palavras do cardeal Martini, ele julga a Igreja em nome da História, revertendo
o que deveria ser o critério católico de julgamento.
A História é realmente uma criatura de Deus, como a
natureza, como tudo o que existe, porque nada do que existe é subtraído de
Deus. Tudo o que acontece na História é previsto, regrado e ordenado por Deus
desde toda a eternidade.
Portanto, para o filósofo da História, todo discurso só pode
começar com Deus e terminar com Deus: Deus não apenas existe, mas toma conta
das criaturas e recompensa ou castiga os seres racionais de acordo com os
méritos e as falhas de cada um. O Catecismo de São Pio X ensina: “Deus
recompensa o bem e castiga o mal porque é justiça infinita”.
A justiça — explicam os teólogos — é uma das infinitas
perfeições de Deus[13].
A misericórdia infinita de Deus pressupõe sua justiça infinita.
Entre os católicos, a ideia de justiça, como a do juízo
divino, é frequentemente repelida. No entanto, a doutrina da Igreja ensina a
existência de um juízo particular que se segue à morte de cada um, com a
retribuição imediata às almas e um julgamento universal em que anjos e homens
serão julgados por pensamentos, palavras, obras, omissões.
A Teologia da História afirma que Deus recompensa e pune não
apenas os homens, mas coletividades e grupos sociais: famílias, nações,
civilizações. Mas enquanto os homens têm sua recompensa ou seu castigo, às
vezes na Terra, mas sempre na eternidade, as nações, sem vida eterna, são punidas
ou recompensadas apenas na Terra.
Deus é justo e recompensador, e dá a cada qual o que lhe
corresponde: não castiga apenas as pessoas individuais como também atribula
famílias, cidades, nações, pelos pecados que são cometidos lá. Terremotos,
fome, epidemias, guerras, revoluções sempre foram considerados punições
divinas. Como escreve o padre Pedro de Ribadaneira (1527-1611), “guerras e
pragas, secas e fomes, incêndios e todas as outras calamidades desastrosas são
punições pelos pecados do povo”[14].
Em 5 de março, o bispo de uma importante diocese italiana
cujo nome não menciono, disse: “Uma coisa é certa: esse vírus não foi
enviado por Deus para punir a humanidade pecadora. É um efeito da natureza em
sua característica de madrasta. Mas Deus enfrenta esse fenômeno conosco e
provavelmente nos fará entender, no fim, que a humanidade é uma aldeia global”.
Esse bispo italiano não renuncia ao mito da “aldeia global”
nem à religião da natureza de Pachamama e de Greta Thurnberg, mesmo que para
ele a “Grande Mãe” possa se tornar “madrasta”. Mas, acima de tudo, rejeita
fortemente a ideia de que a epidemia de coronavírus ou qualquer outro desastre
coletivo possa ser uma punição para a humanidade. O vírus, segundo o bispo, é
apenas um efeito da natureza. Mas quem criou, regula e dirige a natureza? Deus
é o Autor da natureza, com suas forças e suas leis e tem o poder de organizar o
mecanismo das forças e leis da natureza para produzir um fenômeno de acordo com
as exigências de sua justiça ou de sua misericórdia. Deus, que é a causa
primeira de tudo que existe, sempre usa causas segundas para realizar seus
planos. Quem tem espírito sobrenatural não se detém na superfície, mas tenta entender
o plano de Deus escondido sob a força aparentemente cega da natureza.
O grande pecado contemporâneo é a perda da fé dos homens da
Igreja: não deste ou daquele homem da Igreja, mas dos homens da Igreja como um
todo, com algumas exceções graças às quais a Igreja não perde a sua
visibilidade. Essa infidelidade produz a cegueira da mente e o endurecimento do
coração, a indiferença diante da violação da ordem divina do universo.
É uma indiferença que esconde o ódio contra Deus. Como ela
se manifesta? Não diretamente. Esses clérigos são covardes demais para desafiar
diretamente a Deus. Eles preferem expressar seu ódio para com aqueles que ousam
falar de Deus, e aqueles que ousam falar de castigo de Deus são apedrejados, um
rio de ódio se derrama contra eles.
Esses homens da Igreja, apesar de professarem verbalmente
acreditar em Deus, na verdade vivem imersos no ateísmo prático. Eles despojam
Deus de todos os seus atributos, reduzindo-O a puro “ser”, isto é, a nada. Tudo
o que acontece é para eles fruto da natureza emancipadade seu Autor, e somente
a ciência, e não a Igreja é capaz de decifrar suas leis.
Contudo, não apenas a sã teologia, mas o próprio sensus
fidei ensina que todos os males físicos e materiais que não provêm do
homem dependem da vontade de Deus. “Tudo o que acontece aqui contra a
nossa vontade — escreve Santo Afonso de Ligório —, sabei que isso não
acontece senão pela vontade de Deus, como diz Santo Agostinho”[15].
Em 19 de julho, a liturgia da Igreja comemora o bispo de São
Lopo de Troyes (383-478). Ele era irmão de São Vicente de Lérins, cunhado de
São Hilário de Arles, pertencente a uma família de antiga nobreza senatorial,
mas acima de tudo de grande santidade.
Durante seu longo episcopado — 52 anos — a Gália foi
invadida pelos hunos. Átila, à frente de um exército de quatro mil homens,
atravessou o Reno, devastando tudo o que encontrava em seu caminho. Quando ele
chegou diante da cidade de Troyes, o bispo Lopo, revestido das roupas
pontifícias e seguido pelo clero em procissão, encontrou Átila e
perguntou: “Quem és tu que ameaças esta cidade?”. A resposta foi: “Não
sabeis quem sou? Eu sou Átila, rei dos hunos, chamado o flagelo de Deus ”. “E
então seja o flagelo bem-vindo de Deus, porque merecemos os flagelos divinos,
por causa de nossos pecados. Mas, se for possível, desfira seus golpes apenas
na minha pessoa, e não em toda a cidade.”
Os hunos entraram na cidade de Troyes, mas por vontade
divina foram cegados e a atravessaram sem dar-se conta nem ferir ninguém.
Hoje, os bispos não somente não falam de flagelos divinos,
mas também não convidam os fiéis a rezar a Deus para libertá-los da epidemia.
Há uma coerência nisso. Quem reza pede de fato a Deus para intervir em sua
própria vida e, portanto, nas coisas do mundo, para ser protegido do mal e
obter bens espirituais e materiais. Mas por que Deus ouviria nossas orações se
Ele não está interessado no universo que criou?
Se, pelo contrário, Deus pode com milagres mudar as leis da
natureza, evitando o sofrimento e a morte de um homem, ou a hecatombe de uma
cidade, Ele também pode decidir o castigo de uma cidade ou de um povo, porque
pecados coletivos atraem punições coletivas. “Pelos pecados — diz São
Carlos Borromeu – Deus permitiu que o incêndio da peste se difundisse em
cada setor em Milão.“[16].
E São Tomás de Aquino explica: “Quando todo o povo peca, deve–se tirar
vingança dele, ou totalmente, como no caso dos egípcios que, perseguindo os
filhos de Israel, ficaram submersos no Mar Vermelho; e também no dos sodomitas,
que pereceram todos — o que se lê na Escritura. Ou em grande parte do
povo, como no caso dos que adoraram o bezerro.“[17]
Na véspera da segunda sessão do Concílio Vaticano I, em 6 de
janeiro de 1870, São João Bosco teve uma visão na qual lhe foi revelado
que “a guerra, a praga, a fome são os flagelos com os quais o orgulho e a
malícia dos homens serão atingidos”. Assim disse o Senhor: “Vós,
sacerdotes, por que não correis chorando entre o vestíbulo e o altar, invocando
a suspensão dos flagelos? Por que não pegais o escudo da fé e caminhais por
cima dos telhados, nas casas, nas ruas, nas praças, em todo lugar, até
inacessível, para levar a semente da minha palavra? Vós ignorais que esta é a
terrível espada de dois gumes que derruba meus inimigos e que quebra a ira de
Deus e dos homens?”[18].
Hoje os sacerdotes estão calados, os bispos estão calados, o
Papa está calado.
Praça de São Pedro inteiramente vazia…
Estamos nos aproximando da Semana Santa e da Páscoa. E, pela
primeira vez, talvez em muitos séculos na Itália, as igrejas estarão fechadas,
as missas suspensas, até a Basílica de São Pedro estará fechada. As cerimônias
pascais urbe et orbi não reunirão peregrinos de todo o mundo. Deus
também pune por “subtração”, diz São Bernardino de Siena, e hoje Deus parece
ter quase subtraído as igrejas da Mãe de todas as igrejas, da mão do supremo
Pastor, enquanto o povo católico tateia confuso no escuro, desprovido daquela
verdade clara que da Basílica de São Pedro deve iluminar o mundo. Como não ver
no que o coronavírus está produzindo um resultado simbólico da autodemolição da
Igreja?
Judicia Dei abyssus multa. Devemos ter certeza de que o que
acontece não prefigura o sucesso dos filhos das trevas, mas a sua derrota,
porque, como explica o Padre Carlo Ambrogio Cattaneo, da Companhia de Jesus
(1645-1705), o número de pecados, de um homem ou de um povo, é contado[19]. Venit
dies iniquitate praefinita, diz o profeta Ezequiel (21, 2): Deus é
misericordioso, mas há um último pecado que Deus não tolera e que provoca seu
castigo.
Além disso, de acordo com um princípio da Teologia da
História cristã, o centro da História não são os inimigos da Igreja, mas os
santos. Omnia sustineo propter electos (II Tim. 2, 10), diz São
Paulo. A História gira em torno dos eleitos. E a História depende dos desígnios
impenetráveis da Divina Providência.
Na História, atuam homens, grupos, sociedades organizadas,
públicas ou secretas, que se opõem à Lei de Deus, que se esforçam para destruir
tudo o que é ordenado a Deus. Eles podem obter sucessos aparentes, mas sempre
serão derrotados.
O cenário que temos diante de nós é apocalíptico, mas Pio
XII nos recorda que no Apocalipse (6, 2) São João, “não olhou apenas as
ruínas causadas pelo pecado, guerra, fome e morte; Ele também viu pela primeira
vez a vitória de Cristo. E, de fato, o caminho da Igreja através dos séculos é,
sim, uma via sacra, mas também é em cada momento uma marcha triunfal. A Igreja
de Cristo, os homens de fé e de amor cristão são sempre aqueles que, a uma
humanidade sem esperança, trazem a luz, a redenção e a paz. Iesus Christus
heri et hodie, ipse et in saecula (Hebr. 13, 8). Cristo é vosso guia, de
vitória em vitória. Segui-O.”[20]
Nossa Senhora de Fátima profetizou o cenário de nosso tempo
e garantiu seu triunfo. Com a humildade de quem é ciente de que nada pode com
suas próprias forças, mas também com a confiança de quem sabe que tudo pode com
a ajuda de Deus, não retrocedamos e nos consagremos a Maria na trágica hora dos
acontecimentos anunciados pela Mensagem de Fátima.
[1] Francesco
Sisci,Il Sussidiario.net,9 marzo 2020.
[2]Stefano
Feltri,Il Fatto quotidiano, 4 marzo 2020.
[3]https://www.cnbc.com/video/2020/03/09/there-will-be-a-recession-due-to-coronavirus-says-nouriel-roubini.html
[4]Pierre
Gaxotte,La Révolution française,Complexe, Paris 1988, pp. 93-128.
[5]Renato
Cristin,I padroni del caos,Liberlibri, Macerata 2017.
[6]Laura
Spinney,1918. L’influenza spagnola. La pandemia che cambiò il mondo,Marsilio,
Venezia 1918, p. 187.
[7]Barbara
Tuchman,A distant Mirror. The Calamitous Fourteenth Century,Macmillan
Publishers, Londra 1995.
[8]Roberto
S. Lopez,La nascita dell’Europa. Secoli V-XIV, Einaudi, Torino 1966, p. 427.
[9] Ivi,
p. 133.
[10]Ruggero
Romano-Alberto Tenenti,Alle origini del mondo moderno 1350-1550, Feltrinelli,
Milano 1967, pp. 16-26.
[11]San
Bernardino,Opera omnia, Sermo 46, Feria quinta post dominicam de
Passione, vol. II, pp. 84-85.
[12]S.
Gregorio Magno,Moralia,Lib. IX, cap. I.
[13]Réginald
Garrigou-Lagrange,Dieu, son existence et sa nature, Beauchesne, Paris 1950, pp.
440-463.
[14]Pietro
Ribadaneira, La tribolazione e i suoi conforti, Civiltà Cattolica, Roma
1914, p. 207.
[15]S.
Alfonso Maria de’Liguori,Uniformità alla volontà di Dio, Francavilla, Paoline
1968, p. 33.
[16]S.
Carlo Borromeo,Memoriale al suo diletto popolo della città di Milano, Stamperia
Michele Tini, Roma 1579, p. 44.
[17]S.
Tommaso d’Aquino,Summa Theologica,IIª-IIae q. 108 a. 1 ad 5.
[18] Cfr. Memorie
biografiche del venerabile don Giovanni Bosco. Raccolte del sac. Salesiano
Giovanni Battista Lemoyne, edizione extra commerciale, vol. IX, Tipografia
S.A.I.D. “Buona Stampa”, Torino 1917, p. 782.
[19]Carlo
Ambrogio Cattaneo s.j., L’esercizio della buona morte, in Opere, vol.
II, Boniardi, Milano 1867, pp. 169-170.
[20]Pio
XII, Discorso del 12 settembre 1948 in Discorsi e Radiomessaggi, X
(1948-1949), p. 212.
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