21 de fevereiro de 2020
Pergunta — Por que a Igreja proíbe comer carne nos dias
de jejum e nas sextas-feiras? Agindo assim, não mostra certa reticência a este
alimento, dando razão aos adeptos do regime vegano? Pergunto isso porque um
colega de trabalho, que é vegetariano, me fez esse comentário e eu não soube
responder. Obrigada.
Resposta — A disciplina atual da Igreja latina impõe
aos fiéis “guardar abstinência e jejuar nos dias determinados pela
Igreja” (Catecismo da Igreja Católica, n° 2043). O jejum e a abstinência
são obrigatórios na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira Santa; e a mera
abstinência todas as sextas-feiras do ano, salvo se coincidir com alguma
solenidade, conforme o cânon 1251. Mas, por disposição da CNBB, os fiéis
brasileiros podem substituir a abstinência de carne das sextas-feiras por uma
obra de caridade, um ato de piedade, ou pela privação de outro alimento
(Diretório da Liturgia e da organização da Igreja no Brasil, 2010).
Antigamente, a obrigação de abstinência começava com o uso
da razão, ou seja, aos sete anos, mas atualmente ela passa a vigorar somente a
partir dos quatorze anos de idade, e vai até o fim da vida (o jejum é
obrigatório somente entre os 18 e 59 anos). Da obrigação de abstinência — a
qual vigora sob pena de pecado mortal — estão dispensados os doentes, os
operários que realizam trabalhos cansativos, os soldados em campanha e os
pobres e viajantes que não dispõem de outros alimentos.
Importa destacar que a obrigação da abstinência de carne é
um costume multissecular na Igreja, confirmado por lei eclesiástica. Sua
finalidade é nos ajudar a mortificar nosso corpo e dominar as paixões. Tal
obrigação não é de direito natural; ou seja, embora o direito natural obrigue
os pecadores a fazerem penitência por seus pecados, não lhes impõe nenhum meio
específico para isso. Depois da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, essa
obrigação deixou de ser de direito divino. Antes ela acontecia na lei mosaica,
que proibia aos judeus o consumo de certos alimentos.
Na lei da abstinência de carne não entra, portanto, aversão
alguma da Igreja em relação à carne como alimento, nem ao seu consumo pelo
homem, contrariamente ao afirmado de modo errôneo pelo colega de nossa
missivista e pelos que outrora sustentavam algumas heresias (como a dos
maniqueus, para os quais a carne e todo o mundo material eram uma coisa má em
si mesma). Pelo contrário, o Gênesis nos diz que cada categoria de seres
criados foi considerada boa por Deus; e no relato referente ao sexto dia da
criação, acrescenta: “Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era
muito bom” (1, 31).
Não chames de impuro o que Deus purificou
São Pedro – Mestre de Castelsardo (séc. XV),
igreja de São
Pedro Apóstolo,
Tuili, Sardenha, Itália.
Quanto a servir-se da carne como alimento, Deus o autorizou
expressamente a Noé e seus filhos após o Dilúvio, dizendo: “Tudo o que se
move e vive vos servirá de alimento; eu vos dou tudo isto, como vos dei a erva
verde” (Gen 9, 3). Dirigindo-se a Timóteo, São Paulo lhe diz que no futuro
virão “espíritos embusteiros” e “doutrinas diabólicas” (dir-se-ia
que o Apóstolo previra o surgimento dos veganos de nossos dias…), os quais
proibirão “o uso de alimentos que Deus criou para que sejam tomados com
ação de graças pelos fiéis e pelos que conhecem a verdade”, apesar de que “tudo
o que Deus criou é bom e nada há de reprovável, quando se usa com ação de
graças” (1 Tim 4, 1-4).
Mesmo tendo Deus dado a Noé e à sua progênie uma permissão
geral para alimentar-se indistintamente de vegetais e animais, Ele, porém, lhes
proibiu de se alimentarem com o sangue dos animais, presumivelmente no intuito
pedagógico de inspirar nos homens horror ao homicídio. Mais tarde, Moisés
também proibiu aos judeus o consumo da carne de certos animais considerados
impuros; daqueles que morriam por doença ou eram atacados pelas feras; dos
imolados aos ídolos e das carnes sufocadas (ou seja, provenientes de animais
que não tinham sido dessangrados ao morrer).
Nosso Senhor Jesus Cristo, porém, ensinou que a impureza não
provém daquilo que entra pela boca, mas do que sai do coração (Mt 15, 17-20),
revogando implicitamente as prescrições alimentares da lei mosaica. Para
confirmar tal revogação, Deus mostrou a São Pedro — no êxtase que este teve na
casa do curtidor Simão, em Jope, enquanto lhe preparavam de comer — uma toalha
na qual havia “de todos os quadrúpedes, dos répteis da terra e das aves do
céu”, enquanto uma voz lhe dizia: “Levanta-te, Pedro! Mata e come”.
Ao que ele respondeu: “De modo algum, Senhor, porque nunca comi coisa
alguma profana e impura”. A voz então retrucou: “Não chames tu de impuro o
que Deus purificou”. E isso se repetiu três vezes (Act 10, 9-16).
Dita revogação foi ainda confirmada no Primeiro Concílio de
Jerusalém. Contrariando os desejos dos cristãos judaizantes, que queriam
sujeitar os gentios convertidos à observância das abstinências da Lei de
Moisés, o Concílio decretou que “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós [os
Apóstolos] não vos impor outro peso além do seguinte indispensável: que vos
abstenhais das carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, da carne sufocada e
da impureza” (Act 15, 28-29).
O Concílio de Florença (1444) declarou que essa abstenção
(do sangue e das carnes sufocadas) imposta pelos Apóstolos reunidos em
Jerusalém visava unicamente poupar a sensibilidade dos judeus recentemente
convertidos, e que não era mais obrigatória no Novo Testamento.
Enquanto certas igrejas do rito oriental ainda a observam,
na Igreja latina essa prática de abster-se do sangue e das carnes sufocadas já
havia desaparecido na Idade Média. O Papa Nicolau I (858-867), numa resposta a
consultas dos búlgaros, afirmou: “Pode-se comer todo tipo de carnes, a
menos que elas sejam nocivas em si mesmas” (n° 43).
A posição equilibrada da Igreja Católica
Em matéria de abstinência há, portanto, dois erros a evitar:
o primeiro é o excesso dos antigos hereges maniqueus e outros (e hoje, dos
veganos), para os quais comer carne é mau em si mesmo; o segundo erro é o dos
mundanos, para os quais jejuar e abster-se de carne é masoquismo; e ainda o dos
evangélicos, para os quais a abstinência não tem nenhum valor religioso. O
argumento que usam em favor deste segundo erro é a interpretação errônea da
epístola aos Colossenses, que diz: “ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo
beber” (2, 16).
Mas a atitude correta, adotada pela Igreja Católica, é uma
posição intermediária, que prescreve alguns dias de abstinência de carne como
exercício espiritual de mortificação. Segue assim as pegadas de São Paulo, que
declarou: “Castigo o meu corpo e o mantenho em servidão” (1 Cor 9,
27); e afirmou ainda que “os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne,
com as paixões e concupiscências” (Gal 5, 24).
É por isso que, na Igreja primitiva, uma abstinência de
vinte dias era imposta aos catecúmenos que se preparavam para receber o
Batismo. Também desde os primórdios da Igreja, a prática da abstinência de
certos alimentos em determinados dias já era muito difundida entre o comum dos
fiéis, como se verifica nos escritos dos Padres da Igreja.
São Jerônimo afirma que a abstinência data da vinda de
Cristo ao mundo; Clemente de Alexandria diz que Cristo a praticava ao alimentar
seus discípulos com pão e peixe; São Gregório de Nazianzeno afirma que São
Pedro se alimentava somente de favas. Tertuliano diz que no século II os
cristãos da África se abstinham de carne e de vinho. Orígenes, no século III,
diz que é indiferente alimentar-se de carnes, mas que é razoável privar-se
ocasionalmente delas. Santo Epifânio, no século IV, testemunha diversas formas
que tomava a abstinência entre os cristãos da época.
Pelo jejum se reprimem os vícios, eleva-se a inteligência
Alguém poderia perguntar: Por que mortificar o corpo,
privando-se da alimentação nos dias de jejum? E, em particular, por que privar-se
de carne? A razão é que a intemperança é a mãe da luxúria, e por isso o demônio
da impureza só pode ser expulso pela oração e pelo jejum (Mt 17, 21). De fato,
ninguém consegue ser casto se, com certa frequência, não recusa ao seu corpo
até mesmo coisas permitidas.
O meio de triunfar sobre as paixões desordenadas consiste em
enfraquecê-las na sua raiz, pelo jejum e pela abstinência, que são
perfeitamente conformes às disposições da natureza humana, posto ser
fisiologicamente vantajoso substituir em certos dias o regime alimentar
ordinário por outro menos substancioso e energizante. Com tais privações, a
pessoa de alguma maneira se desmaterializa, libertando sua alma, fortificando-a
e predispondo-a para realizar grandes coisas.
Quanto ao fato de a obrigação de abstinência recair sobre a
carne, a Igreja nada fez além de seguir o bom senso; pois, especialmente nos
climas frios, a carne constitui o alimento mais suculento, aquele que pode ser
preparado de formas mais variadas, e pelo qual a maioria das pessoas sente mais
apetite. Confirma-o com sua sensatez habitual Santo Tomás de Aquino: “Ao
instituir o jejum, a Igreja observa o que mais geralmente acontece. Ora, comer
carne é geralmente mais deleitável que comer peixe, embora para algumas pessoas
tal não se dê. Por isso, aos que jejuam a Igreja proíbe comer carne em vez de
peixe” (II-II, q. 147, a. 87, s. 2).
Em resumo, ao impor aos católicos a abstinência de carne, a
Igreja não visa inculcar-lhes qualquer forma de masoquismo, nem sequer a recusa
“vegana” dos alimentos de origem animal, mas aquilo que belamente proclama o
prefácio da Quaresma: “Verdadeiramente é digno e justo, razoável e salutar
que, sempre e em todo lugar, Vos demos graças, ó Senhor santo, Pai onipotente,
eterno Deus, que pelo jejum corporal reprimis os vícios, elevais a
inteligência, concedeis a virtude e o prêmio dela, por Jesus Cristo Nosso
Senhor”.
Ao jejuar e fazer abstinência, devemos pedir a Deus essa
graça do domínio das nossas paixões e da elevação de alma, e de preferência
devemos pedi-lo pela intercessão de Maria Santíssima. Porque mesmo isenta de
qualquer paixão desordenada ou de inclinação ao pecado, em virtude de sua
Imaculada Conceição, Ela foi modelo de mortificação: aceitou com resignação dar
à luz o seu divino Filho num presépio; viveu pobremente na casa de Nazaré; e,
acima de tudo, acompanhou-O na Via Sacra; permaneceu de pé junto d’Ele durante
a Crucifixão; e mereceu assim o título de corredentora.
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