Herman and Roma Rosenblat are shown here in 2008 at their home in North Miami Beach, Fla. (J. Pat Carter/AP)
Por Herman Rosenblat
Miami Beach, Flórida
Agosto de 1942, Piotrkow, Polônia. O céu estava cinzento
naquela manhã em que esperávamos ansiosamente. Todos os homens, mulheres e
crianças do gueto judaico de Piotrkow tinham sido levados até uma praça. Fora
espalhado o boato de que seríamos transferidos. Meu pai tinha morrido de tifo
alguns dias antes, e a notícia se espalhara pelo gueto apinhado. Meu maior
temor era que nossa família fosse separada. “De maneira alguma,” sussurrou-me
Isidore, meu irmão mais velho, “conte a eles a sua idade. Diga que tem
dezesseis anos.” Eu era alto para um menino de onze, portanto poderia afirmar
isto.
Dessa maneira eu poderia ser considerado útil como
trabalhador. Um homem da SS aproximou-se de mim, as botas ressoando nas pedras.
Olhou-me de alto a baixo, então perguntou minha idade. “Dezesseis,” eu disse.
Ele encaminhou-me para a esquerda, onde meus três irmãos e outros jovens
saudáveis já estavam.
Minha mãe foi levada para a direita com as outras mulheres,
crianças, doentes e pessoas idosas. Cochichei para Isidore: “Por quê?” Ele não
respondeu. Corri para o lado de mamãe e disse que queria ficar com ela. “Não,”
disse ela firmemente. “Saia daqui. Não me aborreça. Vá com seus irmãos.” Ela
jamais me falara tão duramente antes, mas eu entendi: mamãe estava me
protegendo. Ela me amava tanto que, apenas por esta vez, ela fingiu não
fazê-lo. Foi a última vez que a vi.
Meus irmãos e eu fomos transportados num vagão de gado até a
Alemanha. Chegamos ao campo de concentração de Buchenwald numa noite várias
semanas depois, e fomos levados até um barracão lotado. No dia seguinte,
recebemos uniformes e números de identificação. “Não me chamem mais de Herman,”
eu disse aos meus irmãos. “Chamem-me de 94983.” Fui designado para trabalhar no
crematório do campo, colocando os mortos num elevador operado à manivela. Eu,
também, me sentia morto. Endurecido, tinha me tornado um número. Em pouco
tempo, meus irmãos e eu fomos enviados a Schlieben, um dos sub-campos de
Buchenwald perto de Berlim.
Certa manhã, pensei ter ouvido a voz de minha mãe. “Filho,”
dizia ela suave mas claramente, “estou enviando um anjo para você.” Então
acordei. Fora apenas um sonho. Um lindo sonho. Porém num lugar daqueles não
poderia haver anjos. Apenas trabalho, fome, e medo. Alguns dias depois, eu
estava trabalhando no campo por trás dos barracões, perto da cerca de arame
farpado onde os guardas não podiam ver com facilidade. Eu estava sozinho. No
outro lado da cerca, divisei alguém, uma garota com cachos claros, quase luminosos.
Estava meio escondida por trás de uma bétula. Olhei ao redor para me certificar
que ninguém podia me ver, Chamei-a baixinho em alemão. “Você tem alguma coisa
para comer?” Ela não entendeu. Aproximei-me mais da cerca e repeti a pergunta
em polonês.
Ela deu um passo à frente. Eu era magro e macilento, com
trapos ao redor dos pés, porém a menina não parecia assustada. Em seus olhos,
eu via vida. Ela tirou uma maçã da sua jaqueta de lã e atirou-a por cima da
cerca. Agarrei a fruta e, quando comecei a me afastar correndo, ouvi-a dizer
baixinho: “Eu te vejo amanhã.”
Eu voltava ao mesmo ponto da cerca todos os dias à mesma
hora. Ela estava sempre lá, com alguma coisa para eu comer; um pedaço de pão,
ou melhor ainda, uma maçã. Não ousávamos conversar ou demorar ali. Ser apanhado
significava a morte para nós dois. Eu não sabia nada sobre ela, “apenas uma
garota da fazenda”, exceto que ela entendia polonês.
Qual era seu nome? Por que arriscava a vida por mim? A
esperança era um artigo tão raro, e esta menina do outro lado da cerca me dava
alguma, algo para me nutrir como faziam as maçãs e o pão.
Quase sete meses depois, meus irmãos e eu fomos colocados
num carro de carvão e enviados para o campo Theresienstadt na Checoslováquia.
“Não volte,” disse eu à garota aquele dia. “Estamos partindo.” Voltei-me em
direção às barracas e não olhei para trás, nem sequer disse adeus à menina cujo
nome eu jamais soube, a garota com as maçãs.
Ficamos em Theresientadt por três meses. A guerra estava
diminuindo e as Forças Aliadas estavam se aproximando, porém meu destino
parecia selado. Em 10 de maio de 1945, eu estava agendado para morrer na câmara
de gás às 10 da manhã. No silêncio da madrugada, eu tentava me preparar. Tantas
vezes a morte parecera me chamar, mas de alguma forma eu tinha sobrevivido.
Agora, tudo estava acabado. Pensei nos meus pais. Pelo menos, estaríamos
reunidos. Às 8 da manhã, houve uma comoção. Ouvi gritos, e vi pessoas correndo
para todo lado através do campo. Consegui reunir-me aos meus irmãos.
As tropas russas tinham libertado o campo! Os portões foram
abertos. Todos estavam correndo, portanto fiz o mesmo.
Surpreendentemente, todos os meus irmãos tinham sobrevivido;
não sei como. Porém eu sabia que a garota com as maçãs tinha sido a chave da
minha sobrevivência. Num lugar onde o mal parecia triunfar, a bondade de uma
pessoa tinha salvado a minha vida, tinha me dado esperança onde não havia
nenhuma. Minha mãe tinha prometido me enviar um anjo, e o anjo tinha vindo.
Com o tempo, consegui chegar à Inglaterra onde fui ajudado
por uma instituição de caridade judaica, colocado num abrigo com outros meninos
que tinham sobrevivido ao Holocausto e treinado em eletrônica. Então cheguei
aos Estados Unidos, onde meu irmão Sam já estava morando. Alistei-me no
exército americano durante a Guerra da Coréia e ao ser desembarcado na Itália,
me apaixonei. Porém meus irmãos disseram: “Você partiu solteiro, volte para
casa solteiro.” Por algum motivo, escutei-os e voltei à cidade de Nova York
após dois anos, sozinho.
Em agosto de 1957 abri minha loja de consertos eletrônicos.
Eu estava começando a me estabelecer. Um dia, meu amigo Sid, que eu conhecia
desde a Inglaterra, telefonou-me. “Tenho um amigo que conhece uma moça da
Polônia. Acho que você deveria encontrá-la.”
Um encontro às cegas? Não, aquilo não era para mim. Porém
Sid ficava insistindo, e alguns dias depois fomos ao Brooklyn para encontrar
Roma (Rivca). Tive de admitir, para um encontro às cegas até que não foi tão
mau. Roma era enfermeira num hospital do Bronx. Era simpática, inteligente e
cheia de vida.
Fomos de carro até Coney Island. Ela era uma pessoa
agradável para conversar, uma boa companhia. Também estava cansada de encontros
às cegas! Nós dois estávamos apenas fazendo um favor para amigos. Demos um
passeio pelo calçadão na praia, apreciando a brisa do Atlântico, e depois
jantamos ali perto. Achei a noite muito divertida. Voltamos ao carro de Sid,
Roma e eu no banco traseiro. Como judeus europeus que tinham sobrevivido à
guerra, sabíamos que havia muita coisa que ainda não fora dita entre nós. Ela
aventou o assunto: “Onde você estava durante a guerra?”
“Nos campos,” eu disse, as terríveis lembranças ainda
vívidas, a perda irreparável. Eu tinha tentado esquecer. Mas jamais se pode
esquecer.
Ela assentiu. “Minha família estava escondida numa fazenda
na Alemanha, não muito longe de Berlim. Meu pai conhecia um padre, e ele nos
conseguiu documentos arianos.”
Imaginei como ela deveria ter sofrido também, tendo o medo
como companheiro constante. E apesar de tudo ali estávamos nós, ambos
sobreviventes, num novo mundo. “Havia um campo perto da fazenda,” continuou
Roma. “Eu via um garoto ali e lhe jogava maçãs todos os dias.”
Que coincidência estranha ela ter ajudado algum outro
menino. “Como era ele?” perguntei.
“Era alto. Magro. Faminto. Devo tê-lo visto todos os dias
durante seis meses.” Meu coração estava pulando, eu não podia acreditar! Isso
não era possível.
“Ele disse a você certo dia para não voltar porque ele
estava deixando Schlieben?”
Roma olhou-me surpresa. “Sim.”
“Era eu!” Eu estava prestes a explodir de alegria e
reverência, inundado pela emoção. Não podia acreditar. Meu anjo.
“Não vou deixá-la ir,” eu disse a Roma.
E na traseira do carro naquele encontro às cegas, eu a pedi
em casamento. Não queria esperar.
“Você está louco!” disse ela. Porém convidou-me para
conhecer seus pais no jantar do Shabat, na semana seguinte. Havia tantas coisas
que eu queria saber sobre Roma, porém as mais importantes eu já sabia; sua
firmeza de caráter, sua bondade. Durante muitos meses, na pior das
circunstâncias, ela tinha ido até a cerca e me dado esperança. Agora que eu a
encontrara de novo, não a deixaria ir. Naquele dia, ela disse sim. E eu mantive
minha palavra. Após quase 50 anos de casamento, dois filhos e três netos, eu
jamais deixei-a ir.
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