29 de setembro de 2019
“Passeata dos Cem Mil”, em 26 de junho de 1968, no Rio de
Janeiro
Péricles Capanema
“Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe, faz a hora, não espera acontecer”
É conhecido, os dois versos, símbolos das agitações de 1968
no Brasil, fazem parte de “Caminhando”, letra de Geraldo Vandré (ou “Para não
dizer que não falei de flores”), ainda hoje repetidos a propósito de tudo e de
nada. Não vou aqui discorrer sobre as disputas no interior da esquerda
(inclusive a terrorista) refletidas nos mencionados versos. Quem conhecia as
táticas revolucionárias, era a ilusão, poderia precipitar acontecimentos,
passar por cima de atitudes prudenciais, enfatizadas por outros setores da
esquerda, que postulavam a necessidade de esperar, em vista da apatia da
opinião pública brasileira.
“Pelas ruas marchando
indecisos cordões”. O conhecimento traria a tática revolucionária eficaz,
geradora da hora revolucionária, desencadearia engajamento nos vacilantes e
apáticos; finalmente, causaria o acontecimento revolucionário decisivo.
Balelas. O amazônico acontecimento era outro. Ainda que
escamoteado naqueles tempos em tantas análises, a apatia da opinião pública,
que não aderia à pauta revolucionária, emperrava as possibilidades das
correntes revolucionarias e inviabilizava seus planos. O povão estava noutra.
Ainda hoje está noutra.
Com efeito, para ódio das lideranças comunistas e
comunistoides, naquele ambiente de guerra fria, de choques entre comunismo e
democracia liberal, entre religião e ateísmo, de tensões entre Rússia e Estados
Unidos, o desinteresse popular pela esquerda no Brasil não publicado (ou
divulgado) impedia o triunfo do programa revolucionário, favorecedor do
bolchevismo.
Havia um matiz a pôr em relevo, existe forte ainda hoje:
aderia de fato ao programa revolucionário apenas fatia minoritária da
burguesia, do dinheiro ou da inteligência, enquistada sobretudo no alto
empresariado, no clero, na academia e nos meios de divulgação. É a opinião
publicada (diferente de opinião pública), gente muito divulgada. E, outrora
como hoje, pois o quadro nas linhas gerais se mantém inalterado, tal fatia do
público de forma arbitrária se julgava e ainda se julga porta-voz popular.
Convém lembrar, o ápice das mencionadas agitações foi a
batizada pela mídia “Passeata dos 100 mil”, realizada em 26 de junho no Rio de
Janeiro, várias vezes glosada entre outros por Nelson Rodrigues. Abaixo pincei
um de seus comentários mais pertinentes:
“Vocês se lembram da Passeata dos Cem Mil, a famosíssima
Passeata dos Cem Mil? Os meus leitores, se é que os tenho, já repararam que eu
a cito muito. E por quê? Quem quiser entender as nossas elites e o seu fracasso
encontrará nos Cem Mil um dado essencial. Não havia, ali, um único e escasso
preto. E nem operário, nem favelado, e nem torcedor do Flamengo, e nem barnabé,
e nem pé-rapado, nem cabeça de bagre. Eram os filhos da grande burguesia, os
pais da grande burguesia, as mães da grande burguesia. Portanto, as elites. E
sabem por que e para que se reunia tanta gente? Para não falar no Brasil, em
hipótese nenhuma. O Brasil foi o nome e foi o assunto riscado. Picharam o nosso
Municipal com um nome único: — Cuba. Do Brasil, nada? Nada. As elites passavam
gritando: — “Vietnã, Vietnã, Vietnã!”.
Já disse, a situação continua hoje no miolo parecida à
exposta pelo jornalista recifense décadas atrás: o povo distante das metas
revolucionárias e um naco das elites, em parte por mimetismo e subserviência a
modas estrangeiras, a elas atrelado. Formam um Brasil desnaturado, repito,
mimetista e subserviente. Falador, expansivo — e divulgado. O mutismo toma
conta da maioria. Será preciso que para felicidade nossa um dia os mudos falem.
Para expandir uma boa influência.
É útil entronizar tal situação no alto de nossas reflexões
ao analisar a presente crise a propósito da Amazônia e das queimadas que ali
acontecem. Tal crise é muito mais presente no Brasil divulgado (o Brasil da
opinião publicada) que no Brasil mudo. Aliás, a crise no presente está tomando
rumo favorável ao Brasil. No curto prazo.
E no longo prazo? Só Deus sabe. É o que mais interessa,
contudo. Desta crise, sob olhar de longo prazo, só vou pôr aqui em evidência um
aspecto saneador, indispensável para sua boa solução, mas desconhecido quando
não silenciado, como se poderá ver abaixo. Nunca devíamos nos esquecer dele.
Em síntese, agora um pouco utópico, mas que volte a ter
relevância decisiva gente que represente de fato o Brasil no que tem de melhor
em todos os âmbitos. É representação natural, nascida do fato, transcende a
representação parlamentar e tende a moldá-la. Conta na vida real, ex facto
oritur ius. Se não caminharmos nessa direção, o Brasil terá dias tristes pela
frente. No caso, que seja excelente na correção, na inteligência, na
habilidade, na firmeza. O clima seria outro, outros seriam os rumos e os
resultados.
Existem ainda entre nós pelo menos raízes que,
desenvolvidas, poderão dar origem a densa vegetação e finalmente dominar a
paisagem, resgatando assim a imagem pátria, hoje maculada por quem não lhe quer
bem. Será maneira de apagar incêndios, abafar queimadas, eliminar sequelas
prejudiciais decorrentes da presente crise, se conduzida desastradamente. E de
futuras.
Sem tal pano de fundo, o senso da necessidade de que o
Brasil tenha uma representação à sua altura, será a bem dizer impossível
escapar do ambiente tóxico em que a boçalidade, primarismo, oportunismo,
arrogância, prepotência envenenam, por exemplo, as relações entre Brasil e
França, de momento o entrevero mais doloroso, mas não único. É urgente que o
vento leve embora tal fumaça e se restaure o clima puro, fresco, oxigenado, que
em tempos passados começava a existir. Só nele os dois países poderão buscar
seus melhores objetivos, sem sequelas de choques desnecessários, para dizer o
mínimo. Pode demorar, é certo, mas que haja um trabalho nessa direção e se
esperem os bons resultados. Esperar é saber.
Analiso então em rápidos traços a situação mais candente na
crise atual, França e Brasil. A maior fronteira da França é com o Brasil. Mais
importante que a linde extensa, a perder de vista, é a preservação e melhoria
já de mais de século das relações especiais de apreço e consideração existentes
entre os dois países; diria mais, tantas vezes de encanto mútuo. O francês já
foi a segunda língua de todo brasileiro educado. E por sintomático repiso (já
evoquei as palavras outras vezes) o que disse Fernand Braudel (1902-1985), dos
maiores intelectuais franceses do século XX: “Foi no Brasil que me tornei
inteligente. O espetáculo que tive diante dos olhos era um tal espetáculo de
história, um tal espetáculo de gentileza social que eu compreendi a vida de outra
maneira. Os mais belos anos de minha vida, eu passei no Brasil”.
Também emblemático, fato narrado por Gilberto Amado (1887 –
1969) em suas memórias deixa ver a relevância de se manter tal clima. Corria
1933, o homem público sergipano havia sido convidado para falar sobre Direito
Penal na Sorbonne para professores de Direito e pessoas ligadas à área
jurídica. Auditório benévolo, mas muito exigente, parte da alta cultura
francesa ali presente. Um professor da Sorbonne, Georges Dumas (1866 – 1946),
amigo do conferencista, o havia apresentado sob luz favorável. A expectativa
era grande. Gilberto Amado assim começou sua conferência: “En venant du Brésil,
ce pays du soleil, vers la France, je viens de la lumière vers la clarté”
[Vindo do Brasil, este país do sol, para a França — venho da luz para a
clareza]. Conquistados e encantados com o gancho, os presentes aplaudiram
vivamente. A conferência foi um êxito. Antes de começar a lição, vê-se bem, o
conferencista, na época das maiores expressões da inteligência brasileira,
inclinava-se contente diante de uma das principais características da cultura
francesa e a homenageava. Ali as elites da inteligência, de um e outro país, se
oscularam para bem dos povos francês e brasileiro. É insano desprezar acervos
assim, nutridos pela História, existentes nos mais variados âmbitos da vida
social, determinantes, quando bem utilizados, para as relações benéficas entre
os povos. Sem tal perfume, as reações entre a França e o Brasil (e também
relações com outros países) terão sempre um travo azedo.
Falei da inteligência. Tratarei agora da inteligência, tato
e firmeza. Um último fato. Há maneiras superiormente eficazes de lidar com os
atentados à soberania e nós já as presenciamos. Em 1905 e 1906 (o caso Panther)
foi violada a soberania brasileira em Itajaí, caso de marinheiro que trabalhava
na canhoneira Panther. De um lado, estava uma das grandes potências do mundo,
grande poder militar, a poderosa Alemanha do imperador Guilherme II. De outro,
um país fraco e agrícola, com as relações exteriores a cargo do barão do Rio
Branco (1845-1912) [Foto ao lado]. Hábil, seguro, educado e firme, o barão
conduziu o caso de modo a que, a Alemanha julgasse melhor pedir desculpas
formais ao Brasil. Qualquer biografia objetiva do barão do Rio Branco descreve
bem o incidente. Por nota datada de 2 de janeiro de 1906, o representante
alemão no Brasil, barão de Teutler, asseverou, não houvera intenção alguma de
se desrespeitar a soberania do Brasil, bem como reiterou os votos de amizade.
Mais ainda, informou que os responsáveis pelo incidente seriam submetidos a
julgamento militar. Aqui está nota da pena do chefe da diplomacia
brasileira: “O Governo Brasileiro aprecia devidamente a retidão e presteza
com que o Governo Imperial procedeu no exame e decisão deste caso, dando mais
uma prova dos seus elevados sentimentos de justiça. Não pode, entretanto —
quaisquer que sejam os usos das marinhas de guerra em outros países — deixar de
lamentar que o Comandante da Panther tivesse incumbido oficiais e praças da sua
guarnição de fazer indagações em terra, mesmo obrando com a maior reserva e
prudência, para verificar o paradeiro de um desertor, tanto mais quanto o mesmo
Comandante declara que contava com a boa vontade das autoridades territoriais,
às quais compete, incontestavelmente, praticar as diligências de polícia
necessárias para a descoberta, captura e entrega de desertores”.
Por que recordo tudo isso? Preliminarmente, para tirar do
mutismo (ou melhor, do olvido e do desconhecimento) fatos que merecem ser
divulgados. Em segundo lugar, para subir os padrões de comparação, é sempre
estimulante ter diante dos olhos modelos de excelência. Em terceiro, para
lembrar a importância de criar ambiente permeado de elevação, em que floresçam
a compreensão e a admiração mútuas (prévio ao surgimento de problemas), que
facilite o bom encaminhamento das soluções. Todos os brasileiros que prestam
esperam que passem as nuvens tóxicas, acabem as queimadas em nossa reputação (e
as desautorizadas na Amazônia), para que o ar se torne cada vez mais impregnado
de civilidade, inteligência e busca efetiva dos interesses nacionais. Como no
exemplo de Gilberto Amado e do barão do Rio Branco que, nos casos relatados,
agiram de maneira eficaz favorecendo interesses do Brasil. Esperemos e
trabalhemos com paciência, com a esperança de chegar a bom porto. Em muitas
ocasiões, esperar é saber.
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