3 de agosto de 2019
Péricles Capanema
A Cristandade tem inspiração e raiz longínqua no Império
Romano, espaço de convivência civilizada do mundo antigo, do qual foi
aperfeiçoamento. Tendo como objeto ser espaço da convivência virtuosa de povos
sob a luz de Cristo, começou a surgir como forte realidade histórica com Carlos
Magno (742-814), seu maior símbolo. Firmou-se muito tempo depois no Sacro
Império Romano Alemão, a mais importante realização de tal ideal.
Território, direito e senso de governo marcaram o império
sob Roma. O mesmo, proportione servata, valeu para a Cristandade. Agrupava
as nações cristãs. O direito, muito variado, aperfeiçoava-se seguindo as
trilhas do consuetudinário e do Direito Romano. O governo, via de regra, — por
longo período imerso em atmosfera pré e supranacional — agia consoante o
princípio de subsidiariedade, embora sua explicitação só viesse séculos depois.
Georg Schmidt o chamou de Império-Estado complementário (poderia ser chamado de
Império-Estado subsidiário). Enfim, a Cristandade foi realização valiosa, ainda
que insuficiente e até em pontos defeituosa, da ordem temporal cristã.
Infelizmente, sua luz foi se apagando, até que em 1806 se extinguiu. Deixou
enorme saudade, restou fulgurando como ideal no horizonte da Europa cristã.
Anos atrás ouvi do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira: “Em
relação à Igreja, eu sou como o judeu em relação ao Templo. Amo o Templo, amo
as ruínas do Templo, e se essas ruínas se converterem em pó, amarei o pó que
resultou dessas ruínas”. Analogamente, para um católico imbuído da convicção de
como importa existir uma ordem temporal cristã, tais palavras se aplicam por
inteiro à Cristandade. Até o pó dela merece amor. É também dele a
proclamação: “Quando ainda muito jovem, considerei enlevado as ruínas da
Cristandade, a elas entreguei meu coração, voltei as costas ao meu futuro, e
fiz daquele passado carregado de bênçãos, o meu porvir”.
Aqui vou levantar ponto essencial, sem o qual inexistiria a
Cristandade. Os povos que a compunham tinham convicção de que seus interesses
maiores eram a preservação e aperfeiçoamento daquele estado de coisas. Em
segundo plano, vinham os interesses nacionais, regionais, corporativos,
familiares, pessoais. Talvez o mais relevante exemplo de defesa da Cristandade
tenha sido São Pio V (1504 – 1572), Papa a partir de 1566. Articulou enorme
aliança militar destinada a formar a armada que derrotou os turcos em Lepanto
em 1571, preservando uma Europa onde ainda eram vivos os restos da Cristandade.
Em sentido contrário, tantas vezes os agredindo, temos o longo trajeto da
chamada aliança franco-otomana, que começou em 1536 entre Francisco I e
Solimão, o Magnífico. Começavam a prevalecer os interesses do Estado-nação, os
da Cristandade iam para o fundo do palco.
No século XX e XXI, eco precioso, se quisermos ruínas
veneráveis, da Cristandade foi o que se chamou o Ocidente cristão e, mais
recentemente, apenas Ocidente. Nessa acepção de Ocidente, que não é geográfica,
estão por exemplo, Japão, Coréia do Sul, Cingapura.
Escrevia cima, o Império Romano foi espaço de convivência do
mundo civilizado. O Ocidente é o espaço de convivência de princípios básicos do
que se poderia chamar a civilização cristã; se quisermos, da ordem temporal
cristã. Nos dias presentes, vigência de liberdades na vida pública e privada,
economia de mercado. E nesse sentido, hoje, um espírito bem formado deve
colocar os interesses ocidentais, de momento enormemente ameaçados, na frente
dos interesses de qualquer país, mesmo o seu. Adversárias dos princípios
ocidentais no século XX e XXI foram as potências totalitárias e coletivistas,
entre outras, a Alemanha nazista, a Rússia soviética e agora a China comunista.
Fiz longa introdução para entrar fácil no assunto do artigo:
no tratado de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. É amazônico,
inclui concorrência, serviços, investimentos, temas ambientais, desenvolvimento
sustentável, compras de governo, propriedade intelectual. Muita coisa ainda. O
governo brasileiro, estimativa inicial, prevê que em 15 anos as exportações
brasileiras para a União Europeia terão um acréscimo de US$100 bilhões de
dólares anuais. E haverá grande aumento de investimentos da UE no Brasil. O
acordo trará ao Brasil prosperidade, maior renda, geração de empregos.
O caminho até a implementação final será longo, cheio de
obstáculos. Teremos muita discussão nos meios de divulgação e nos parlamentos
dos 28 países que compõem a União Europeia (e também no Parlamento Europeu).
Haverá debates nos países do Mercosul. Os assuntos devem ser tratados e
resolvidos. Não são o foco de meu artigo.
Meu foco é outro. O Brasil está perigosamente dependente da
China, vamos escorregando para a condição de efetivo, ainda que não confessado,
protetorado chinês. Não só o Brasil, igualmente a Argentina, Uruguai, Paraguai.
O acordo com a União Europeia, pelo menos em patê, nos tira de tal dependência,
aumenta a efetividade de nossa independência e soberania. E das outras nações,
acima mencionadas. Seria conveniente aproximação semelhante com os Estados
Unidos e Japão. Estão em jogo gravíssimos interesses ocidentais.
Sintomas reveladores. A esquerda europeia está furiosa. A
esquerda brasileira rosna (sempre silenciosa em relação à aproximação com a
China). O candidato kirchnerista Alberto Fernández, saindo da visita a Lula,
declarou que, se eleito, vai rediscutir o acordo. Querem de todo modo
explodi-lo, apesar da pobreza que daí seguirá. Pelo que vi nos meios de
divulgação, nem na Europa, nem aqui, ninguém sublinha que o mais importante do
acordo é o fortalecimento dos interesses ocidentais. É.
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