(Rio de Janeiro, 1954 – os anarquistas)
Deslumbra-me a conversa dos dois velhos anarquistas, o escritor e a
operária: o mundo liberto das injustiças e dos preconceitos, nem o poder do
Estado, nem a lei fosse qual fosse. Trinta anos depois escreverei um romance,
Tocaia Grande, nascera naquele dia quando dona Angelina chorou de emoção ao
abraçar Thomas da Fonseca*.
Tomas da
Fonseca, prosador ilustre, em Portugal mais do que ilustre, uma legenda viva,
símbolo da resistência ao fascismo, da audácia do pensamento livre: o sonho da
sociedade sem fronteiras de qualquer espécie. Angelina D’Acol Gattai, imigrante
italiana, tinha quatro anos de idade quando desembarcou no Brasil, a família de
camponeses vênetos de Pieve di Cadore veio trabalhar nas fazendas de café de
São Paulo após a abolição da escravatura. Aos nove anos Angelina entrou de
operária têxtil numa fábrica do Brás, na pauliceia desvairada. Fez-se
anarquista ao conhecer Ernesto, os Gattai vieram de Florença, atravessaram o
mar nos porões imundos para realizar o sonho do agrônomo Giovanni Rossi: fundar
nas selvas do Paraná a Colônia Cecília, experiência de sociedade anarquista na
América, sob o patrocínio de Dom Pedro II, Imperador - já então era o Brasil um país surrealista.
A colônia
durou quatro anos, a mesquinhez do cotidiano a liquidou, mas as ideias
libertárias afirmaram- se e floresceram na cidade de São Paulo das primeiras
indústrias e dos grêmios das classes laboriosas. Angelina namorou o mecânico
Ernesto nas reuniões e festas operárias - imigrantes italianos, espanhóis e
portugueses encontravam-se, discutiam, discursavam, declamavam, encenavam
peças. As poesias e as canções anarquistas da península, as peças de Pietro Gori:
Angelina, primeira-dama do palco proletário. Ressoava o canto da Catalunha em
fogo: donde vas com paquetes y listas / que tan pronto te veo correr/ voy al
Congreso de las anarquistas/ que reclaman um derecho: vivir/ Escúchame um
momento se quieres / Anarquista, que quiere decir? / Es la imensa falange
obrera / que reclama um derecho: vivir! Os poemas de Guerra Junqueiro, os
livros de Thomas da Fonseca, a italiana Angelina, anarquista brasileira,
declamava o vate português, sabia de memória trechos incendiários do prosador. Mesmo
quando o marido Gattai subiu na vida, de motorista dos Prado, paulistas
quatrocentões, passou a agente dos automóveis Alfa Romeo, de libertário virou
militante do Partido Comunista, Angelina manteve intacta a quimera, o sonho.
Ancião, as barbas
brancas desciam-lhe sobre o peito, de passagem pelo Rio, Thomas da Fonseca veio
me visitar, ao escritor como ele também proibido em Portugal, amigo de seu
filho Branquinho*, eu o recebi no alvoroço da admiração, abertos os braços do
bem-querer: jamais uma visita me honrara tanto. Enquanto conversávamos política
e letras, Zélia saiu correndo em busca de dona Angelina, por feliz acaso também
no Rio, em nossa casa, para comunicar que seu ídolo, dela, Angelina, estava na
sala tomando cafezinho.
Dona
Angelina, não acreditou: Thomas da Fonseca, ali em pessoa? Impossível. Repreendeu
a ousadia da filha, que, com tal atrevimento, lhe faltava ao respeito, levando
na chalaça suas ideias e seus mitos. Fez-se necessário que eu a fosse buscar
para que viesse à sala e, em lágrimas, beijasse as mãos ossudas do Ancião. Ficaram
a conversar.
Dona
Angelina declamou trechos dos livros de Thomas da Fonseca, sabia páginas
inteiras de memória, agora era os olhos do escritor que se iluminavam. A
tertúlia prosseguiu em utopia, Zélia e eu ouvintes deslumbrados.
*Thomas da Fonseca (1877/1968), escritor português, líder
anarquista.
**Branquinho da Fonseca (1905/1974), escritor português.
(NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM)
Jorge Amado
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JORGE AMADO - Quinto ocupante da Cadeira 23 da
ABL, eleito em 6 de abril de 1961, na sucessão de Otávio Mangabeira e recebido
pelo Acadêmico Raimundo Magalhães Júnior em 17 de julho de 1961. Recebeu os
Acadêmicos Adonias Filho e Dias Gomes.
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