Escorou-se à janela na esperança que o tempo melhorasse. Era uma noite feia, sem estrelas, entremeada por uma chuva fina, incessante, empoçando as ruas, dificultando o trânsito das pessoas; tudo deserto, as biqueiras num trós-trós, às vezes cadenciado, outras sem ritmo, assustando; lâmpadas opacas entre os chuviscos, por trás das vidraças, penduradas pelos postes, ornamentando a torre de uma igrejinha no centro da praça principal. “Parecendo início de Semana Santa”, pensou, chateado, acendendo um cigarro; ajustou pelo corpo uma capa preta, ajeitou o chapéu, decidindo enfrentar o temporal miúdo e incessante que o impacientava. Saiu cauteloso, desviando-se das poças; a capa preta, de oleado, emitia um brilho semelhante à pele de sanguessuga, ante os reflexos das lâmpadas mortiças, entre a penumbra orvalhada pela garoa que ele parecia infinita.
Enquanto
caminhava, lembrou com desgosto da vida militar, onde passou cerca de um ano,
contrariado, obedecendo ordens de superiores hierárquicos, cumprindo tarefas
insuportáveis; lembrou das fardas mal lavadas , cheirando a sujo, dos
alojamentos abafados, das camas enfileiradas parecendo de enfermaria; da ordem-unida,
da física, manhã cedinho, quando camaradas cheirando a suor escanchavam em seus
ombros; da petulância e do pedantismo de alguns graduados aos gritos,
orgulhosos até às batatas das pernas. Via-se às voltas com o cabo Evaristo,
baixinho de pernas tortas, bruto, enfarruscado: “Você aí, seu cara de sergipano!”
O tenente
Costa, de cavanhaque louro e óculos com aros finos dourados, bigode com pontas
viradas, montado num cavalo esquipador, desfilando nas folgas pela avenida
beira-mar. Em compensação, quando deixou a farda, era dono de uma carteira de primeira
categoria. No dia do licenciamento, mesmo sem dinheiro, passou a noite
badernando pela rua, em companhia de alguns companheiros também licenciados.
A chuva trazia-lhe
essas recordações súbitas. Tentou esquecê-las dando um muxoxo. Veio-lhe à
memória a morte do tio Eusébio com uma úlcera no estômago. Parecia ver o
cenário em seu redor, a sala humilde onde se dera o passamento, a chegada do
tio numa rede enforquilhada conduzidas por dois homens com as camisas atadas a
cintura, suados; dia chuvoso, à tardinha, o tio soltou o último suspiro. Ao
redor da cama, a mulher e dois filhos, ela chorando, calada, vez em quando
enxugando o rosto com um lenço branco, encardido; os dois meninos, assustados, sem
afastarem os olhos do pai espichado, feições fundas, barba crescida. Fora, caía
uma chuva fina, incessante, com rajadas de vento frio. No dia seguinte,
acompanhou o enterro e assistiu, de olho duro, descerem o tio dentro de um caixão
preto sustentado por cordas, para o fundo de um buraco; um negro musculoso e
careca enchia uma pá de terra e ia entulhando a cova, barulho fofo ruía no
fundo a cada batida do barro sobre o caixão; pessoas presentes falavam coisas
que se repetem nessas ocasiões, “Deus lhe abra as portas do céu”. “Coitado,
finalmente descansou”. Parecia ver, naquele instante, o pequeno grupo de
pessoas cabisbaixas saindo pela porta da frente do cemitério onde o tio ficaram
para sempre.
De súbito,
levou um escorrego, mas não caiu. A lembrança do enterro afastou-se, a chuva
fina insistia. As goteiras pingavam, as lâmpadas pelos postes de madeira,
embaciadas, a capa preta de oleado esfriava. O dia seguinte seria domingo, dia
de descanso; iria, como de costume, arrumar o quarto, ajeitar as roupas,
separar as que iam para a lavadeira; lustrar os sapatos, assistir a algum
programa de televisão, aguardar outra segunda-feira chata, entre as mesmas
caras, repetindo contas, arrumando coisas no escritório cheio de livros,
computadores, o gerente no compartimento ao lado, de óculos brancos, gravata,
bem penteado.
Lembrou do
salário pequeno, dos preços das coisas aumentando a cada dia. Olhou para o céu
sem estrelas, nem nos confins dos horizontes turvos, sem paisagem. Uma amendoeira
próxima atinou-lhe que estava chegando à casa de Juanice, moça que conhecera havia
pouco tempo. Desabotoou a capa de oleado, escorreu por ela as mãos frias, espanando
os chuviscos impregnados na superfície. Arrancou a ponta de cigarro dentre os
beiços e atirou-a numa poça d'água próxima a um poste da rede elétrica; tirou o
chapéu. Subiu para o passeio, três passos e bateu com veemência à porta da
namorada: “Sou eu, Juanice!”.
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição 2004)
Ariston Caldas
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