Todos os santos na igreja eram cobertos com um pano roxo na
Semana Santa, menos Jesus Cristo. Era proibido comer carne vermelha e beber
leite. A refeição matinal era com café e pão. À noite, a refeição era a mesma. Ainda
bem que tinha um pouco de arroz e peixe no almoço. Sempre achava um jeito de
chupar uma manga, um pedaço de melancia ou laranja para tapear a barriga e não
sucumbir à fome. Fazia isso com cuidado, sem que minha mãe soubesse. Ela dizia
que as pessoas deviam jejuar na Semana Santa, em sinal de amor e respeito à
morte do Cristo. O jejum era só naquela semana, passava logo, ninguém ia morrer
por isso.
O comércio cerrava as portas na quinta e sexta-feira.
Ninguém trabalhava nesses dias. A mãe falou que um homem entendeu de tirar
leite da vaca na Sexta-Feira Santa para tomar no café da manhã. Quando ele
começou a puxar as tetas da vaca, só saía sangue em vez de leite. Aquilo era um
sinal do céu para que o homem respeitasse o dia em que Jesus Cristo, o bem-amado
salvador da humanidade, foi crucificado sem piedade pelos homens.
Parecia que toda a cidade amanhecia vestida de roxo na
Semana Santa, principalmente na Sexta-Feira. Assistia ao filme sobre a vida,
paixão e morte de Jesus Cristo na matinê da Quinta-Feira Santa do Cine Itabuna.
As pessoas saíam cabisbaixas do cinema quando o filme acabava. Ninguém se
conformava com o que fizeram com Jesus, que foi coroado com uma coroa de
espinho, depois de ser cuspido e chicoteado. Para não se falar na cruz pesada
que o pobre coitado carregara pelas ruas. Não satisfeitos com tanta judiação
ainda pregaram o filho de Deus na cruz de maneira cruel. Em vez de água, quando
Ele pediu, deram vinagre e, por último, enfiaram uma lança no coração. Era
demais o sofrimento de Jesus, muita gente chorava.
E tudo por causa do Judas, que traiu Jesus por um saquinho
de dinheiro em moedas. O Judas passava como um dos apóstolos de Jesus, mas se
rendeu à tentação do dinheiro. Deu um beijo na face para entregar o filho de
Deus aos soldados romanos. Todo mundo se vingava do Judas quando no filme ele
aparecia enforcado, o corpo do traidor balançando numa corda amarrada ao galho
da árvore seca. Nessa hora, o cinema quase vinha abaixo com as vaias da
plateia.
Tinha uma sensação na procissão da Sexta-Feira Santa que
tudo era pecado, dor e lamentação pelo que fizeram a Jesus. A imagem de Nosso
Senhor Morto era levada no andor pelas ruas principais da cidade sob os cantos
que falavam de pesares e perdão:
Perdoai, Senhor,
Por piedade,
Perdoai-nos, Senhor,
Tanta maldade,
Antes morrer,
Antes morrer
Do que Vos ofender...
* Cyro de Mattos é escritor, poeta e advogado aposentado.
Diplomado em capoeira regional pela escola de Mestre Bimba, em Salvador. Tem no
prelo da Editora Mazza, de Belo Horizonte, o livro “Poemas de Terreiro e
Orixás”.
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