(Para Joaci Goes)
Foi nos idos de 1953. Saltei do bonde na parada próxima ao
Restaurante Cacique e Cine Guarani, com o firme propósito de conhecer aquele
monumento de mais de dez metros, um homem lá no alto encimando o pedestal.
Aquele homem de cabeleira negra e basta devia ser muito importante para que
fosse homenageado em monumento tão grandioso.
Atravessei a rua com
a luz forte do verão caindo no asfalto e me aproximei do monumento. Meu olhar
curioso viu que em um dos lados estava um livro aberto com um sabre
atravessado, tendo em letras douradas os versos: “Não cora o sabre do hombrear
com o livro”. Em placa de mármore, numa das faces da base, lia-se: “A Bahia a
Castro Alves.”
Aquela estátua de bronze assentada no alto representava um
poeta, muito querido pelo povo baiano, estava ali na atitude de fala
importante, de quem declamava, tendo a cabeça descoberta, fronte erguida, olhar
perdido no infinito, chapéu mole de estudante à mão esquerda, braço direito
estendido. De um lado da coluna no monumento, vi um grupo em bronze,
representando um anjo em posição de voo, a levantar uma mulher escrava pelo
braço, erguendo-a ao alto. E também um
casal de escravos.
Quem era esse poeta que a Bahia dedicava imenso amor? Lembrei
da biblioteca da agremiação estudantil no Colégio dos Irmãos Maristas. E foi
lá, durante a semana, à hora do recreio, folheando o livro ABC de Castro Alves,
de Jorge Amado, que fiquei conhecendo a vida e a obra daquele grande poeta, que
os baianos com orgulho chamavam de gênio.
Era um rapaz
esbelto, que vivera pouco. Nasceu na fazenda Cabaceiras, próxima a Curralinhos,
na Bahia, em 14 de março de 1847. Tinha grandes olhos vivos, maneiras que
impressionavam a quem o assistisse declamando versos de amor, às flores e em
solidariedade aos escravos. Causava admiração aos homens e arrebatava paixões
às mulheres. Seu estilo contestador contra a situação da escravidão dos
negros na Bahia o tornou conhecido como O Poeta dos Escravos. Além de
abolicionista exaltado, foi um liberal atuante, que clamava pela instalação da
República no Brasil. Teve como colega Rui Barbosa no Colégio Abílio Borges, em
Salvador, e na Faculdade de Direito do Recife. Faleceu aos seis de julho de 1871,
aos 24 anos, em Salvador, vítima de tuberculose.
Depois de
conhecer um pouco a vida do poeta romântico, interessei-me por sua poesia. Fui ler,
um a um, os livros desse poeta, cantor do amor, da água, das pétalas, dos
negros escravos e da liberdade. Publicara em vida apenas um livro: Espumas
Flutuantes, em 1870. Seus outros livros, A Cachoeira de Paulo Afonso, 1876, Os
Escravos, 1883, Hinos do Equador, 1921, tiveram edição póstuma.
Na medida em
que fazia a leitura duma poesia cativante e libertária, ia anotando alguns
versos no caderno, que me enriqueciam a sensibilidade.
Como esses: Senhor
Deus dos desgraçados! / Dizei-me vós, Senhor Deus, / Se eu deliro... ou se é
verdade / Tanto horror perante os céus?!... / Ó mar, por que não apagas /
Co'a esponja de tuas vagas / Do teu manto este borrão? / Astros! noites!
tempestades! / Rolai das imensidades! / Varrei os mares, tufão! ...
Ou esses:
Oh! Bendito o que semeia / Livros à mão cheia / E manda o povo pensar! /
O livro, caindo n'alma / É germe – que faz a palma, / É chuva – que faz o mar!
Ou ainda esses, escritos com
graça e leveza: Prendi meus afetos, formosa Pepita... / mas, onde? / No tempo?
No espaço? Nas névoas? /Não rias... / Prendi-me num laço de fita!
Perguntava-se como
era que no coração de um poeta tão jovem como Castro Alves cabia tanta
afetividade e solidariedade aos excluídos.
Com a leitura de cada livro do poeta, minha alma foi-se impregnando da
beleza e da verdade postas de maneira maior em versos comoventes, em tons
vários escorridos com amor e talento raro, que só os gênios possuem. Castro
Alves tornou-se em pouco tempo um ídolo para o moço do interior, desses em que a
marca de uma época ou de um tema brilha com a individualidade manifestada numa
espécie de criador, a permanecer sempre ante a vida que passa.
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Cyro de Mattos é ficcionista e poeta. Da Academia de Letras
da Bahia. Possui prêmios importantes no Brasil e exterior. Publicado também por
várias editoras europeias. Primeiro
Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.
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