BORDO DO Pedro II
31º DIA (Continuação)
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Chegou o pessoal.
Nísia está radiante, contentíssima.
Os colegas, cabotinos e bancando importância,
cheios de dedos, cada qual a se considerar mais importante,
e nas cavaqueações a misturarem frases inglesas castelhanas ao vernáculo.
As gafes eram imensas.
Eles não as contam.
Cada um arrota mais prestígio.
As citações de nomes arrevezados, saem a cada momento.
Uma coisa eu sei que é verdadeira:
Estão limpos e sem vintém nas algibeiras.
A salvação é que viajam num barco do Loyd e o governo
paga-lhes o sustento.
Nísia está contrariada com a conduta de alguns, tais as
inconveniências praticadas em terra estranha, manchando a reputação da pátria.
São uns insensatos.
Atenções do governo e da sociedade mexicana.
Passeios, convescotes, banquetes, recitais e sessões
científicas.
Estou cansado de tanta festa!
Aspirando a um descanso e a um repouso.
Partida marcada.
Aguardamos a chegada do Bagé, de sua volta da América, para
conduzir-nos à pátria de regresso.
Chegou o Bagé.
Explosões de júbilo.
Contentamento.
Despedida com uma festa que a nossa embaixada ofereceu à
sociedade mexicana a bordo do navio.
Foi solene
Foi impecável.
Distinta!
Fechamos com chave de ouro a nossa estada no estrangeiro.
Rumo ao Brasil direto a Recife.
Viagem tumultuosa e cheia de encantos.
Eu e Nísia boicotamos os componentes da embaixada e a sós
vivemos o nosso mundo.
Uma lua-de-mel espiritual.
Numa comunhão de ideais e sentimentos.
Somos invejados.
Somos vistos com olhos pérfidos.
Não ligamos para eles.
As festas de bordo não mais compartilhamos.
Afinal houve uma festa em honra ao ministro mexicano que
viaja para o Rio onde vai representar o seu país.
Fomos convidados.
Aceitamos.
Foi uma exibição artística magnífica.
Declamações.
Recitais de canto.
Um número de dança nacional.
Nísia representou a bandeira mexicana.
A embaixatriz do México a brasileira.
Quando as duas, empunhando as bandeiras do México e do
Brasil, penetraram no salão de festas, as palmas foram estrepitosas.
Nísia fez um improviso ao México numa felicidade rara. Numa
eloquência cicereana, percorre lembrando os heróis mexicanos e termina beijando
a bandeira do México.
Salvas de palmas abafaram as suas últimas palavras.
A embaixatriz do México comovida, também beijou a bandeira
do Brasil e ternamente a Nísia.
O representante do México fez o brinde de honra ao Brasil
saudando o seu presidente na pessoa do comandante do navio.
Foi uma festa maravilhosa, especialmente pela cordialidade.
Recife à vista.
Saudamos a terra do Brasil com vários urros e palmas.
Saltamos.
Passeio pela Veneza brasileira, cheia de pontes, rios e
palácios.
O Bagé apenas demorou quatro horas no porto.
Novamente à bordo, para o término da viagem.
A costa do Norte já não tem o pitoresco e a magia daquela do
Sul.
A natureza aqui não se esmerou tanto. Lembro, entretanto,
Gonçalves Dias no seu verso candorado e patriótico.
Mas praias alvíssimas a orlam e dão beleza singular,
bordadas com os coqueiros e as carnaúbas.
Sem esquecer-me das lendárias jangadas que salpicam de
encantos o seu verde mar, sempre protegido por um céu de um azul tão puro e tão
suave como não há igual na terra.
O Doutor Hidalgo, embaixador mexicano, entreteve à noite
sobre o pálio do cruzeiro, uma palestra agradável conosco (refiro-me à Nísia),
que vou tentar aqui descrevê-la.
Madame Hermosa, a embaixatriz, foi coparticipante na
tertúlia, se bem que somente para discordar e manter-se irredutível na defesa
de seu dogma de fé religioso.
Tombadilho do Bagé. Sala de estar.
Cadeiras de vime pintadas de esmeralda e decoradas a ouro.
Ao centro uma mesa redonda também de vime ostentando
braçadas de flores recifenses...
Eu e Nísia lemos.
Nísia, um tratado inglês sobre fisiologia; eu releio o meu
diário de viagem.
Aproxima-se o casal de embaixadores mexicanos.
- Buenos dias...
- Buenos, mui Buenos...
- Estão a ler tão cedo. Acho que para noivos e em viagem de
recreio, isto é algo admirável e estranho.
- Concordo madame.
- Sentem-se, façam-nos a graça da companhia tão gentil e
cativante como instrutiva.
- Aceitamos, não pelas bondosas afirmativas, mas pelo prazer
da jovem companhia.
- Leem...
- Os meus borrões de viagem.
- Um tratado sobre fisiologia.
- E nada de amores nem de versos, nem de madrigais.
Esquisito que tão jovens e já com o inverno dos anos a lhes perturbarem as
alegrias e as espontaneidades da juventude!...
- De certo que gostamos destas cousas, a que todos da nossa
idade rendem culto, mas é que encaramos a vida, o amor, o sentimento por outros
prismas.
- Parece-lhes que estamos no século de Demóstenes e de
Cícero?
- Não, apenas vejo espíritos velhos em corpos novos, moços.
Não concordo, isto é, contra todos os dogmas da Igreja e como tal devemos
respeitá-los; são mistérios que o ser humano não pode e não deve contrariar, a
não ser que se queira tornar incréu e infiel.
- Mas senhora embaixatriz, nem eu nem Nísia concordamos com
o crer sem saber a razão. A nossa doutrina religiosa resume-se apenas no
cumprimento do dever, no respeito a todos os seres da criação, especialmente ao
homem, nosso semelhante.
- De acordo, estou com o seu pensamento – disse o
embaixador. A senhora é católica dogmática a esta classe de gente que “têm
olhos, mas não veem e têm ouvidos, mas não ouvem”, é inútil, é inútil a
discussão. São irredutíveis nos seus dogmas, mistérios e convicções religiosas.
- De fato, a Deus pertence o mundo e as criaturas e só a ele
é possível o conhecimento das cousas divinas. A nós só compete adorá-lo e
honrá-lo.
- Estou de perfeito acordo com a madame, mas embora seja
mulher e tenha admiração pelo culto artístico e rico dos católicos e que
reconheça que a Igreja deve ao mundo grandes causas e importantes obras,
todavia, discordo dos dogmas e dos mistérios, das penas e das recompensas.
Acho-os absurdos e inexplicáveis.
- Oh! Não fale assim, minha querida, não ofenda a Jesus.
Olhe que a sua santíssima Mãe está a ouvir-nos e Lúcifer não perde
oportunidades para lançar as suas garras sobre as pessoas que falam
inconsideradamente. Cuidado, minha filha, com as palavras e com aquelas que
representam ofensas, blasfêmias. Deus castiga com ira a quem o desobedece...
- Desculpe-me, madame, mas não posso compreender um Deus
irado e vingador. Um Deus que criou um ser igual a si no poder e que este poder
é somente para arrebatar ao inferno e ao purgatório os seres que ele criou à
sua imagem e semelhança. Não, isto é conto para fazer temer a crianças.
- Bem, “a cada um segundo as suas obras”, pode a menina
pensar assim, mas, está em erro e cedo ou tarde, responderá pelo que diz.
- De certo que respondo pelos meus atos, de posse como estou
do meu livre arbítrio, responsável, portanto, perante o meu espírito, pelos
atos bons ou maus que praticar. Mas, posso errar, posso cair, posso laborar em
erro, mas tenho em minha frente não o castigo, mas o tempo, para com novas
obras meritórias pagar o mal que fiz com o bem que fizer e deste modo remir-me
da culpa, não perante Deus, mas perante mim mesma, no tribunal da minha
consciência.
Palmas do embaixador...
- Disse profundas e consoladoras verdades aristotelinas...
- Isto são divagações contrárias ao que ensina a Santa Madre
Igreja. A mocidade de hoje em todos os países é a mesma. Desculpe-nos,
senhorita.
- Não há por que se desculpar, estamos numa tertúlia
agradável; o meu espírito sente-se contentíssimo nestas divagações. Há de
concordar comigo que são melhores do que aquelas que se estão realizando ali no
salão de bailes, ao som do jazz e ao enlaçar de corpos nos bamboleios do samba,
da rumba, do fox e do tango!
- De fato, mas é que a música e os divertimentos são
permitidos por Deus. Não devemos abusar deles, mas usá-los com moderação é até
salutar.
- Tanto mais quando os cérebros estão toldados com os
vapores do néctar dos deuses, que até no altar é admitido, no sacrifício da
missa.
- Oh! Mas ali ele representa o sangue de Jesus Cristo. Não
blasfeme, minha querida.
- Mas é sempre com o suco da parreira que se faz o “sangue do
Cristo”, que se faz a Champagne com que as “cocotes” e as levianas celebram as saturnas
do vício e as sociedades galantes toldam o cérebro e perdem a noção de
dignidade, tornando-se presas da volúpia, da licenciosidade e do sensualismo.
- É grande menina! Sois com as vossas ideias um compêndio de
moral. Eu vos felicito.
Obrigada Doutor Hidalgo. Agradeço o vosso encorajamento.
Sois um corpo velho com uma alma de moço.
- Não admira que meu marido aprecie as ideias feministas da
menina, ele é ateu, e não sei como não é comunista.
- Pobre da minha mulher, grande alma infantil! Não sei
quando quer despertar e abrir os olhos à luz.
Nísia:
- Mas senhora embaixatriz, a quem admiro como respeitável
senhora, como digníssima esposa, como dama aristocrática da raça, como mexicana
amiga do meu país, como cristã e adoradora do maior filósofo que palmilhou a
crosta deste “vale de lágrimas”, permita-me que lhe diga, que não há ser nenhum
ateu, especialmente em se tratando do seu digno marido, essa grande alma sonhadora
e possuidora de dotes de inteligência que ofuscam a maioria de seus
semelhantes. Não senhora, não existe ateu!
- E a menina crê em Deus e como O define, já que se referiu
a Jesus.
- Peço-lhe dez minutos de atenção para nesse diminuto espaço
de tempo, dizer-lhe em síntese como creio em Deus e como O percebo.
- Perfeitamente.
- Sirva-nos limonada para acalmar os nossos cérebros e as
nossas emoções.
- Sentemo-nos mais confortavelmente. (final na próxima
postagem)
(AQUARELAS E RECORDAÇÕES Capítulo XXII) – continuação...
Francisco Benício dos Santos
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