Como se fosse um castigo
Cirilo conheceu Neidinha na última
Primavera, ela de bermuda, blusinha de seda florida, sandálias brancas; muito
bonita, quinze anos, até parecia ter mais, pela robustez. Cirilo soube da idade
dela logo depois e aí comparou à dele, contando nos dedos. Quinze anos mais
velho. Mais não teria sido isso a causa do arrependimento mais tarde, dez dias
depois, quando conheceu Jacilda, mãe de Neidinha; 35 anos, viúva, mais bonita
que o sair do sol, como ele a simbolizara no momento, dando uma de poeta. Talvez
fosse tarde.
De qualquer forma não deveria
sentir-se triste, afinal de contas a filha de Jacilda era uma gracinha, mesmo
sem comparações com a mãe, “uma protuberância”. A espontaneidade dos olhos, dos
lábios; os gestos, os cabelos alucinantes, as pernas, a voz, tudo uma loucura. Neidinha
era calada, macia. “Puxou ao pai”, dizia Jacilda – retraída, calma, sutil. Foi assim
para aceitar as declarações de Cirilo, exigindo prazo para resposta; disse sim,
muito séria, como se estivesse atormentada. Até o primeiro beijo foi outra
novela e quando isso aconteceu o foi num cantinho da boca, de susto.
Nas conversas curtas, Neidinha
falava sobre o pai dela, chamava-se Amaro Veiga, 40 anos quando morreu num
desastre aéreo. “Era calado assim”, dizia Jacilda espichando um canto da boca.
Amaro deixou um seguro para ela, uma casa e diversos bens miúdos como móveis,
eletrodomésticos e dois terrenos na área urbana central da cidade. Neidinha era
filha única.
Nas primeiras aproximações com
Jacilda, Cirilo não chegou a exageros, mas sentiu um impacto no juízo
transmitido pelo cheiro do corpo, pela estética das mãos, pelo jeito de andar;
tantos detalhes preciosos que nem os sabia peculiarizar. Tentação. Se não tivesse
conhecido Jacilda, teria casado com Neidinha em pouco tempo, mesmo porque a
menina era bonita, mesmo sem o feitiço da mãe dela. Agora era uma dualidade;
comprava presentes para as duas, mas com uma diferença: para Jacilda, tudo
especial; no aniversário dela comprou uma bolsa de luxo e um estojo de perfume
importado. Nunca dera um presente assim a Neidinha; trazia-lhe balas de mel,
chicletes de hortelã; uma vez por outra, uma blusinha de malha, uma sandália
simples.
Jacilda tinha mais sorte – vestidos de luxo, perfumes do estrangeiro. No
último inverno ganhara um casaco de pele. Com o tempo, Neidinha passou a sentir
essas coisas; de início até gostava de ver a mãe ganhando presentes valiosos,
depois notou a diferença para os que ela recebia, mas não chegou a desconfiar: “por
causa do santo, se beija o altar”, lembrou. Não tinha motivo para desconfiar de
Cirilo com Jacilda, mulher de boa cepa, educada, moral alta. Ninguém no mundo
era capaz de acusa-la disso ou daquilo; Cirilo, funcionário público de
conceito, bem remunerado, de família decente, responsável. Pensando assim,
Neidinha sentia-se tranquila, sem maldade, mesmo observando os presentes caros
e a intimidade crescendo entre os dois. “Considerações ao futuro genro”,
pensava.
Toda tarde, quando Neidinha voltava
do colégio das freiras, onde estudava, tomava banho, arrumava-se toda,
perfumava-se e, depois da janta, sentava-se num estofado na sala de espera onde
ficava aguardando Cirilo que só chegava depois das oito. Mas, como tudo na vida
é mutável, naquela tarde Neidinha saíra cedo do colégio, uma professora dela
adoecera. Rumou para casa, onde cuidaria dos deveres escolares. Tinha a chave
da porta; entrou tranquila lembrando da professora doente. “De quê?” Não seria
coisa grave.
Pela porta escancarada do quarto de
Jacilda, veio a surpresa. Não acreditou no que viu, era Cirilo nu deitado com
ela também despida, tranquilo, folheando uma revista como se nada estivesse
acontecendo no mundo; Jacilda alisando-lhe a barriga cabeluda. Neidinha sentiu
vontade de gritar, mas não gritou; fitou novamente o cenário, sem acreditar no
que via, sentiu falta de ar, imaginou que estava tonta; virou as costas, baixou
a cabeça, disparou aflita e foi sentar-se no pátio que dava para o quintal onde
acomodou a cabeça sobre os joelhos e desatou a chorar.
Momentos depois Jacilda apareceu de
short, cabelo desarrumado, mas tranquila como se nada tivesse acontecido. “Parece
um pesadelo”, pensou Neidinha enxugando os olhos com os dedos.
À noite, depois do jantar, Jacilda
tratou do assunto com Neidinha: “Cirilo vai se casar comigo. Não fosse você,
queridinha, eu teria perdido esta oportunidade”. Neidinha ouviu tudo calada,
imóvel, com a imagem impura da mãe nua alisando a barriga cabeluda de Cirilo. E,
abafada, saiu cabisbaixa para o quarto onde dormia, passando a noite sem pregar
um olho, entre pensamentos mórbidos, com vontade de gritar bem alto: “Puta!”.
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição
2004)
Ariston Caldas
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Ariston
Caldas nasceu em Inhambupe, norte da Bahia, em 15 de dezembro de
1923. Ainda menino, veio para o Sul do estado, primeiro Uruçuca, depois
Itabuna. Em 1970 se mudou para Salvador onde residiu por 12 anos. Jornalista de
profissão, Ariston trabalhou nos jornais A Tarde, Tribuna da Bahia e
Jornal da Bahia e fundou o periódico ‘Terra Nossa’, da Federação dos
Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia; em Itabuna foi redator
da Folha do Cacau, Tribuna do Cacau, Diário de Itabuna, dentre outros. Foi
também diretor da Rádio Jornal.
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