Os indiferentes
Como chegar ao Rio de Janeiro de agora, e a uma pálida ideia
de futuro, senão pelo desenho das crianças? Dão início às primeiras tentativas
de traduzir o mundo interno, a espessura dos afetos, o modo pelo qual se
inscrevem no corpo da mãe e da casa que coincidem. E depois o desenho do
quintal e arredores, uma porta, duas janelas. No alto, à esquerda, como a
proteger a casa, um sol radiante. Uma árvore, bem entendido, as primeiras
imagens do rosto e da família. A cidade e o mundo são a última fronteira
da subjetividade, no tempo em que dobrar a esquina era uma conquista sem
precedentes.
As escolas da comunidade ajudam a compreender, no desenho de
meninos e meninas de apenas dez anos, os limites da cidade e as feridas que não
fecham, a leitura do presente e uma espera misteriosa. Em alguns desenhos não
há sol. As árvores aparecem desertas de fruto e sem raiz, com a casa a poucos
milímetros do chão. Algumas sem janela. Outras sem portas. Sangram esses
desenhos, como as crianças. Numa cidade cujo estado diminuiu – em diversos
sentidos –, nas redes solidárias que se despedaçaram e que desampara a
infância.
Há também desenhos de morte e assassinatos, com um claro
riacho de sangue, uma chuva de balas perdidas cruzando o céu, sem nuvens, com
um sol pálido e triste. E, mesmo assim, insistem nas brincadeiras de
roda, no jogo de futebol. As crianças confessam a própria dor, através do jogo,
ao mesmo tempo em que buscam aprisionar, em seus rabiscos eloquentes, a força
do mal, quanto mais fortes o medo e o risco de perder. Lembro do desenho
de um caveirão e de um traficante, igualmente aterradores.
Nesses desenhos, há o esboço de uma biografia latente. Um
destino que começa, literalmente, a ser desenhado. Não ainda irreversível, mas
em marcha. E, no entanto, em muitas representações do mundo, numa leitura
a contrapelo, dos edifícios empilhados e sufocantes, em contraste com espaços
generosos que não se veem nas comunidades, assim como a vegetação que perdemos
na cidade, multiplica-se no giz de cera verde. Crianças de mãos dadas e um azul
do céu por onde passam pipas com caudas que não terminam, helicópteros e
balões. As meninas sonham com avidez. O sonho é o patrimônio das crianças e
nosso combustível.
A cidade do Rio precisa considerar esse espelho precioso e
variegado, ouvir o volume de medo e esperança de nossas comunidades, e criar
uma rede crucial de proteção, começando pela escola e programas de proteção às
famílias.
O maior perigo são as crianças educadas pelo medo e marcadas
por agressão e apatia. Se nossos meninos e meninas perdem o direito de
sonhar, é porque tudo vai muito mal. Ou nos mobilizamos seriamente ou nos
tornamos sócios de uma guerra surda e cruel, o crime imperdoável da indiferença
diante da infância e do futuro.
O Globo, 07/03/2018
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Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL,
eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila, foi
recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha. Foi eleito
Presidente da ABL para o exercício de 2018.
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