É, a vida
é um mundéu, o tempo vai passando, passando, e quando a gente percebe, adeus
mocidade!
Seu Afonso
pensava assim deitado numa espreguiçadeira na varanda do fundo, olhando uns
assanhaços saltando entre as folhas do mamoeiro rente à cerca. Imagens antigas
passavam súbitas por sua cabeça às volta
com boiadas pelos gerais do Oeste baiano, embarbelado, gibão e caneleiras, tudo
de couro cru.
Quando ele
passava conduzindo uma boiada, os moradores fechavam as portas e se
acotovelavam pelas janelas; posudo num cavalo alazão de crinas largas, ele
aboiava e fazia cabriolas. Conhecia toda a redondeza, tinha uma namorada em
Ibotirama, “cabocla bonita e cheirosa”. Nem perdia festa de rua, os bailes
animados por todo canto. “Tempo bom”, refletia entre sombras antigas,
esquecendo os assanhaços saltando pelas folhas do mamoeiro.
Meditou haver passado toda sua
juventude por aquelas bandas desertas
sem asfalto, sem iluminação elétrica; tinha saudade dos banhos no rio São Francisco cheio de piranhas; nem
tinha medo das piranhas; saudade dos jardins de Ibotirama assim de garotas; do
mulherio, as meninas decotadas pelas esquinas
depois das dez da noite, Terezinha tinha 19 anos, já de peitos murchos e
a dentadura falhada, mas bonita de dar gosto.
As unhas de Lurdes pareciam de um gavião, cabelos fofos, negros e
ondulados; quando a conhecera ela usava um vestido branco e ligado. “Uma
novilha”. Gostava de Lurdes, tomava cerveja com ela e fizeram uma vez havia muito tempo. Agora, fora vê-la
novamente, depois de uma vaquejada; ela bebia com dois sujeitos; ao notá-lo,
afastou-se deles e o abraçou, puxando-o
depois para o quarto ao lado. Um dos sujeitos era meio-gordo e baixo, de
costeletas longas, boina preta e meio de banda na cabeça, o outro, mulato
espadaúdo, calça até a boca do estômago sustentada por uns suspensórios largos
formando um xis nas costas; cabelo de escadinhas partido no meio. Os dois
passaram a noite num converseiro infeliz: “mulher vagabunda, bandida, merece
uma surra bem dada; isso não se faz com ninguém, somos moleques!” Diziam, entre
outras lamúrias. Notou depois que eles se referiam a Lurdes; não gostaram do
chamego dela, ainda o rebocando para dentro do quarto; tomou as primeiras
providências puxando da cintura um parabélum e colocando-o sobre a banquinha de
cabeceira; deitou-se nu e passou a acarinhar o corpo de Lurdes estirada na
cama, mas de olho nos dois.
Uma
abstinência súbita tomou-lhe o corpo de cima a baixo, o rosto queimava. “Estes
caras enchem o saco”, Lurdes falou alisando-lhe o rosto queimando, parecendo
ter febre. “Você está quente”, disse
ela; depois, desapontada, virou-se para a parede e dormiu.
Os dois
sujeitos se foram embora ao amanhecer. Certamente temiam o chapéu embarbelado,
a couraça, o rebenque encastoado e, principalmente, o parabélum pendurado à
cintura. “Se eles tentassem uma investida contra mim ou contra Lurdes, eu os
queimaria na bala, sem dúvida”.
Muita
apreensão furando o juízo; a certa
altura pensou vestir a calça, ir a eles e indagá-los: o que há, companheiros!
Querem calar a boca para que eu possa dormir? Lurdes garantia que nada tinha a
ver com eles; provaria ser um homem de verdade! O corpo dela era todo branco na
turvação do quarto, espalhado sobre a cama; a momentos, ele acarinhava os seios dela, a barriga
delgada; depois descia uma mão lhe apalpando p púbis de pelo espesso, macio;
mas o entusiasmo não chegava, o rosto pegando fogo, os nervos esfarelados.
Lurdes até se esforçou; “você é muito
bonito, andava doida para este encontro”, dizia, passando as mãos pelos peitos
cabeludos dele, arfando, pelo cangote de boi zebu; depois passou a lambe-lo de
cima a baixo, mas o calor parecia assar-lhe o rosto, todo o corpo; nunca havia
experimentado reação assim.
Os dois
sujeitos não paravam a goela e o baixinho, que parecia o dono de tudo, falava
mais alto, todo cheio de
costeletas, vermelho, agitado, de boina
preta atravessada; sujeito metido a trunfo. Quase se decidiu a sair do quarto,
com o parabélum e meter-lhe o cano na testa:
“Cale a boca, filho da puta!” Mas não saiu.
O sol já estava alto quando se
afastou, deixando Lurdes que ainda dormia. Até hoje ele sentia raiva dos dois
sujeitos, mais ainda do baixinho de costeletas longas e boina preta. “Moleque
enjoado merecia uns tapas pelas fuças.
Naquele
tempo tudo era diferente de hoje, concluiu seu Afonso voltando a dar atenção
para os assanhaços que se despediam em bandos do mamoeiro, numa desfilada
espetacular, em direção a um bosque verde-escuro, para as bandas do Sul.
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição, 2004)
Ariston Caldas
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