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terça-feira, 13 de novembro de 2018

LEMBRANÇAS DE SEU AFONSO – Ariston Caldas

Lembranças de seu Afonso

É, a vida é um mundéu, o tempo vai passando, passando, e quando a gente percebe, adeus mocidade!

            Seu Afonso pensava assim deitado numa espreguiçadeira na varanda do fundo, olhando uns assanhaços saltando entre as folhas do mamoeiro rente à cerca. Imagens antigas passavam  súbitas por sua cabeça às volta com boiadas pelos gerais do Oeste baiano, embarbelado, gibão e caneleiras, tudo de couro cru.

            Quando ele passava conduzindo uma boiada, os moradores fechavam as portas e se acotovelavam pelas janelas; posudo num cavalo alazão de crinas largas, ele aboiava e fazia cabriolas. Conhecia toda a redondeza, tinha uma namorada em Ibotirama, “cabocla bonita e cheirosa”. Nem perdia festa de rua, os bailes animados por todo canto. “Tempo bom”, refletia entre sombras antigas, esquecendo os assanhaços saltando pelas folhas do mamoeiro.

            Meditou haver passado toda sua juventude por aquelas bandas desertas  sem asfalto, sem iluminação elétrica; tinha saudade dos banhos  no rio São Francisco cheio de piranhas; nem tinha medo das piranhas; saudade dos jardins de Ibotirama assim de garotas; do mulherio, as meninas decotadas pelas esquinas  depois das dez da noite, Terezinha tinha 19 anos, já de peitos murchos e a dentadura falhada, mas bonita de dar gosto.  As unhas de Lurdes pareciam de um gavião, cabelos fofos, negros e ondulados; quando a conhecera ela usava um vestido branco e ligado. “Uma novilha”. Gostava de Lurdes, tomava cerveja com ela e fizeram uma vez  havia muito tempo. Agora, fora vê-la novamente, depois de uma vaquejada; ela bebia com dois sujeitos; ao notá-lo, afastou-se  deles e o abraçou, puxando-o depois para o quarto ao lado. Um dos sujeitos era meio-gordo e baixo, de costeletas longas, boina preta e meio de banda na cabeça, o outro, mulato espadaúdo, calça até a boca do estômago sustentada por uns suspensórios largos formando um xis nas costas; cabelo de escadinhas partido no meio. Os dois passaram a noite num converseiro infeliz: “mulher vagabunda, bandida, merece uma surra bem dada; isso não se faz com ninguém, somos moleques!” Diziam, entre outras lamúrias. Notou depois que eles se referiam a Lurdes; não gostaram do chamego dela, ainda o rebocando para dentro do quarto; tomou as primeiras providências puxando da cintura um parabélum e colocando-o sobre a banquinha de cabeceira; deitou-se nu e passou a acarinhar o corpo de Lurdes estirada na cama, mas de olho nos dois.

            Uma abstinência súbita tomou-lhe o corpo de cima a baixo, o rosto queimava. “Estes caras enchem o saco”, Lurdes falou alisando-lhe o rosto queimando, parecendo ter febre. “Você está quente”,  disse ela; depois, desapontada, virou-se para a parede e dormiu.

            Os dois sujeitos se foram embora ao amanhecer. Certamente temiam o chapéu embarbelado, a couraça, o rebenque encastoado e, principalmente, o parabélum pendurado à cintura. “Se eles tentassem uma investida contra mim ou contra Lurdes, eu os queimaria na bala, sem dúvida”.

            Muita apreensão furando o juízo;  a certa altura pensou vestir a calça, ir a eles e indagá-los: o que há, companheiros! Querem calar a boca para que eu possa dormir? Lurdes garantia que nada tinha a ver com eles; provaria ser um homem de verdade! O corpo dela era todo branco na turvação do quarto, espalhado sobre a cama; a momentos,  ele acarinhava os seios dela, a barriga delgada; depois descia uma mão lhe apalpando p púbis de pelo espesso, macio; mas o entusiasmo não chegava, o rosto pegando fogo, os nervos esfarelados. Lurdes até se esforçou;  “você é muito bonito, andava doida para este encontro”, dizia, passando as mãos pelos peitos cabeludos dele, arfando, pelo cangote de boi zebu; depois passou a lambe-lo de cima a baixo, mas o calor parecia assar-lhe o rosto, todo o corpo; nunca havia experimentado reação assim.

            Os dois sujeitos não paravam a goela e o baixinho, que parecia o dono de tudo, falava mais alto,  todo cheio de costeletas,  vermelho, agitado, de boina preta atravessada; sujeito metido a trunfo. Quase se decidiu a sair do quarto, com o parabélum e meter-lhe o cano na testa:  “Cale a boca, filho da puta!” Mas não saiu.

            O sol já estava alto quando se afastou, deixando Lurdes que ainda dormia. Até hoje ele sentia raiva dos dois sujeitos, mais ainda do baixinho de costeletas longas e boina preta. “Moleque enjoado merecia uns tapas pelas fuças.

            Naquele tempo tudo era diferente de hoje, concluiu seu Afonso voltando a dar atenção para os assanhaços que se despediam em bandos do mamoeiro, numa desfilada espetacular, em direção a um bosque verde-escuro, para as bandas do Sul.


(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição, 2004)
Ariston Caldas

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