Exmo Sr. Presidente da ACL, dr. Artur Anselmo
Exmo Sr. Acadêmico Antonio Valdemar
Ilustres membros
Senhoras e Senhores
Do sonho dos poetas e escritores lusitanos vivi anos a fio
de minha juventude. Protegido pelos fortes dos séculos XVI e XVII que margeiam
a Guanabara, entre o Rio e Niterói, e velam o tesouro da língua que me precede
e arrebata. Tal como o farol intermitente da fortaleza de Santa Cruz, quando fixo
a entrada noturna da baía. Origem de uma língua que tem o mar como destino e
comunhão. Minha janela alcança o velho mar que nos une.
Nenhum corsário, por incógnito e sub-reptício, será capaz de
arrancar de nosso meio a intensidade do til e da nasalização e a plácida
melodia das vogais manuelinas, vibráteis, cuja precisa escansão é um tributo ao
erário de um português fiel a seu passado. Nossa língua não perdeu seu dna,
antes amoldou-se, onívora, a um destino polifônico.
Se adentrarmos os subúrbios da Leopoldina, a voz do povo
reveste-se da pátina quinhentista, para além da toponímia, nas antigas flexões
e prefixos verbais, boa parte de quanto surde nos cantos de Os lusíadas,
pronunciados pela gente simples, as levas migratórias das ilhas e continentes
que foram outrora de el-rei e dos impérios da África.
Meus ouvidos de menino seguiam essas ondulações, fluxo e
refluxo, passado e futuro, aquela mesma síntese com a qual Machado de Assis
inventou uma expressão toda sua, forjada num eterno presente, rigoroso e salutar.
Dei início a uma navegação de cabotagem, sem agulhas de
marear, na imensidão linguística do português, às vezes, em horizonte
trágico-marítimo, armado de sonho claro e de esperança vã, ao renegar o nec
plus ultra de minhas colunas de Hércules, inspiradas desde a escola de
Sagres ao tempo extinto da Ulisseia, de Gabriel Pereira Castro.
Em meus albores, tomei o partido de Vieira na carta ao Bispo
do Japão, porque um dia dom João IV há de ressuscitar, e a cujo encalço
lançamo-nos há séculos para, quem sabe, atravessarmos, um dia, o atalho do
espaço-tempo, a famosa ponte de Einstein-Rosen. Teci infinitas conversações com
Cesário e Florbela, desde a rapariga de “um bairro moderno” a seu anverso
feminino e àquele cabo tormentório, em cujas águas se ocultou.
Tal como Sá-Carneiro, ando perdido entre o que sou e uma
intangível alteridade, a salvo, tão-somente, porque unido aos heterônimos de
Pessoa, em cujas formas se dissolvem meus cuidados.
Quantas luas contei nas águas, densas e bravias, plácidas e
altivas, de Camões, antes de vislumbrar a esplendorosa Vênus desnuda. Morro-me
quando procuro Antero, entre nuvens e relógios, ao longo de um inacabado por de
sol e, com igual fervor, afundo os remos na noite escura de Al Berto, furiosa e
quebradiça, tamanha a sua beleza imponderável.
Não me afasto um centímetro da matemática de Gedeão, pois a
ideia-número guarda uma poética intrínseca.
E vou cercado pelo magma de Herberto, cuja atividade
vulcânica não cessa na minha alma sísmica, lapili de palavra e soledade,
ritmado o esconjuro intermitente à hora mortis.
Embora a lista se apresente inacabada, invoco a latência de
um emblema: dom Sebastião, perdido nas lonjuras de um império imaterial.
Procuro a desejada parte oriental, mais imprecisa e
ecumênica, através de Mensagem e Tabacaria, frutos sazonados de
uma abrangência fundada nas coisas mais diáfanas e sutis.
Como não lembrar de José Régio, “naquela alvorada de
névoa”, prefácio do rosto de el-rei:
“Numa Ilha ignota é que ele agora vivia, o Encoberto e o
Desejado de sempre. E um dia viria, numa alvorada de névoa, resgatar o seu
Reino da pobreza e da vergonha [...] o capitão de Deus, o Rei da esperança
maior que os desesperos, o vencedor da sua própria imperfeição mortal...”
Quanto seria longo e inútil confessar a adesão sebástica de
que sou vítima, os encobertos que busquei, nos labirintos de Vieira e nas águas
conceituais de Pessoa, nos excessos de Sampaio Bruno e no feixes de sentido em
Teixeira de Pascoaes. Cada qual inclinado ou arrastado a um multiverso de
futuro incompossível, tão variegados se mostram entre si as leituras
dissonantes de um rei inacabado.
A inscrição do futuro dá-se através do legado de um espectro
flutuante das línguas portuguesas, a imagem sebástica, aqui e agora, pois
a volta ao passado é apenas uma hipótese da teoria de Gödel, restrita a não
poucos impasses.
Em outras palavras, não será possível alcançar, através da
máquina do tempo, o rosto de dom Sebastião. Somente nas malhas da língua viva,
nos poros da pele, nas muitas cores e diversas latitudes, na forma de grafá-las
ou traduzi-las é onde daremos início a uma nova epistemologia: na
interface com outras línguas, no tempo agora, no vislumbre da aura e de sua consequente
epifania.
Língua que une e separa, integra e desintegra, partilhada
por avaros e pródigos. Língua indomável, nas dobras e rizomas da interlíngua,
no espaço entre as palavras, vogais e consoantes. Somente aqui a língua
portuguesa assume toda a sua vocação especular, como na hóstia do padre Manuel
Bernardes. Brilha no fragmento o sinal de uma totalidade interrompida, sem
exclusão do sujeito, de seu irredutível espaço, de sua corrente identidade.
Toda a pertença, todo o acúmulo de sonhos que o atravessa, no rumorejar
do tempo.
Lembro-me do ensaio de Mircea Eliade, Camões e Eminescu,
no elogio das línguas extremas da latinidade, o romeno e o português, línguas
de fronteira, capazes de enorme assimilação de mundo e espaço-tempo, um
romaneio de palavras, para torná-las sui juris.
Línguas que se fazem notar pela beleza, Vênus desnuda, cujas
extremidades se tocam no corpo de um latim que mal se reformou, entre o
Atlântico e o Mar Negro, à deriva de demandas prístinas e atuais, como um graal
inquieto e preservado.
Língua sem barreiras, sem medo de arrostar novas
comunidades, formas de diálogo que dissolvam fantasmas ideológicos, em
decomposição.
Foi Eduardo Lourenço quem corajosamente definiu, em A
nau de Ícaro, o movimento pendular que une e divide nossos países. O Brasil não
cometeu devidamente o parricídio, como se filho de si próprio se tornasse, sem
forças de recuperar os laços fundadores. E Portugal não se libertou de uma
saudade projecional do império, preso no labirinto de suspiros e saudades, nos braços
do Minotauro, sem o fio de Ariadne. Diz Eduardo Lourenço, em outra parte, sobre
uma possível lusodifusão:
“é no espaço cultural, não só empírico mas
intrinsecamente plural, que os novos imaginários definem que um qualquer
sonho de comunidade e proximidade se cumprirá ou não [...] É bom estar na casa
dos outros como na nossa. É melhor que os outros estejam em nossa casa como na
sua. Mas isso nem se pede, nem se sugere. Esperemos que nos encontremos em
qualquer coisa como a antiga casa miticamente comum por ser de todos
e de ninguém”.
Essa casa miticamente comum repousa na dinâmica de um
projeto em construção, de todos e de ninguém, como o Homero da Grécia,
reclamado por todas as cidades, nascido em todas as épocas. Assim, pois,
a casa comum da lusotopia, multidiversa e plurimodal, dispõe de um volume
generoso de tempo, onde nos assentamos, respeitosos, sem esconder a síntese de
que somos filhos e protagonistas, com as línguas ao sul do Atlântico, das
Áfricas e das Índias.
Leio o capítulo sexto da História do futuro e
substituo a presença de Portugal, sem a apagar, fixando-me no rizoma de
proporções planetárias, a própria lusocromia:
Não venceram só a Poro, rei da Índia, e seus exércitos; mas
sujeitaram e fizeram tributárias mais coroas e mais reinos do que Poro tinha
cidades. Não navegaram só o mar Indico ou Eritreu, que é um seio ou braço do
Oceano, mas domaram o mesmo Oceano na sua maior largueza e profundidade, aonde
ele é mais bravo e mais pujante, mais poderoso e mais indômito: o Atlântico, o
Etiópico, o Pérsico, o Malabárico, e, sobre todos, o Sínico, tão temeroso por
seus tulões e tão infame por seus naufrágios. Que perigos não desprezaram? Que
dificuldades não venceram? Que terras, que céus, que mares, que climas, que
ventos, que tormentas, que promontórios não contrastaram? Que gentes feras e
belicosas não domaram? Que cidades e castelos fortes na terra? Que armadas
poderosíssimas no mar não renderam? Que trabalhos, que vigias, que fomes, que
sedes, que frios, que calores, que doenças, que mortes não sofreram e
suportaram, sem ceder, sem parar, sem tornar atrás, insistindo sempre e indo
avante, com mais pertinácia que com instancia?”
Não se trata de um discurso de guerra, mas de seu contrário,
uma conquista de mão dupla, sem vencedores ou perdedores. Metáfora de paz
arrevesada.
Em tamanha diversidade, havemos de recuperar um dia o rosto
de dom Sebastião. Como quem reúne os 14 pedaços de Osíris, ao longo do Nilo,
para recompor sua figura. Ou, ainda, os 201 pedaços de Exu, desde a cultura
iorubá, como lembrou recentemente o rei de Ifé, em visita ao Brasil, a fim de
apaziguar a alma dos escravos mortos. Ou talvez melhor: quando, no Bhagavadgītā,
toda a beleza de Kṛṣṇa se desvela, em seus olhos, como o Sol e a Lua
conjugados, os braços infinitos, sob intensa “massa de esplendor”,
guardião do devir, fruto de uma insólita adição épica.
Assim também a língua portuguesa, como os rostos e os corpos
de Kṛṣṇa, centrada e descentrada, ao longo de um núcleo semântico
centrado e descontínuo.
Eis a latência infindável de dom Sebastião, mártir redivivo,
na etimologia do testemunho, de um tesouro equívoco, a desenhar a cultura da
paz, das areias do deserto ao delta do Ganges, ao longo das “colaterais
constantes rochas” do Amazonas, do Tejo e do Minho, aos rios e oceanos de um
império urdido em metáfora e saudade.
Também aqui Sebastião: a espera ativa, de língua e
liberdade, onde se consumou boa parte de uma persona flutuante ou
sediciosa, como em Canudos, visto por Euclides da Cunha, em Pedra Bonita fixada
por Ariano Suassuna, nas rútilas distâncias de Goa e de Macau, em Timor Leste,
nas ilhas de Cabo Verde afortunadas.
De todas as partes, a casa comum, cresce na urdidura
delicada de que somos feitos, e emancipados no futuro, sem perder a origem e as
dores do parto.
Um Sebastião travestido de língua, um rei ambíguo,
transfigurado. “Última flor do Lácio”, jardim afro-brasileiro, onde cabem
todas as Índias, também uma jangada de pedra.
Não tenho dúvidas: a língua portuguesa é o semblante do
Encoberto e Desejado, onde todos se reconhecem numa densa e luminosa
alteridade especular.
Muito obrigado pela acolhida neste egrégio Sodalício.
Discurso de posse na Academia das Ciências de Lisboa 16
de outubro de 2018
Portal da ABL , 18/10/2018
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