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Sempre que os fatos ganham velocidade, costumo comprar um
bloco de notas. Anoto frases, ideias, intuições e deixo que se decantem com o
tempo.
Volto a elas, depois, para rejeitá-las ou desenvolvê-las. A
primeira frase que me veio à cabeça foi a da vendedora de flores que encerra um
filme.
O pequeno bloco também tem ideias. Por exemplo: comparar a
ditadura com o governo Lula. Uma neutralizou o Congresso pelo medo; o outro,
pelo pagamento de mesada.
Ditadura e governo Lula compartilham o mesmo desprezo
pela democracia, ambos violentaram-na, reduzindo o Parlamento a uma ruína
moral.
Os militares prepararam sua saída de forma organizada. Nem muito devagar, para
não parecer provocação, nem muito rápido para não parecer que estavam com medo.
Já o núcleo duro do governo Lula parece perdido, batendo
cabeça, ou melhor, enfiando-a na areia, sem perceber que a polícia está
chegando e, daqui a pouco, alguém vai gritar na porta do Planalto:"Se
entrega, Corisco".
Quando era menino e vivia em Juiz de Fora, fazíamos rodas de
capoeira, bastante rudimentares - confesso. Mas cantávamos: "A polícia
vem, que vem brava / quem não tem canoa, cai n'água".
Tudo isso jorra aos borbotões na minha caderneta. Anotei: chamar alguém do
"Guinness", o livro dos recordes, para saber se algum tesoureiro de
qualquer partido do mundo se desloca com batedores de motocicleta e carros
clones para iludir perseguidores;
...se algum tesoureiro partidário se desloca com jatos
particulares, semanalmente; se introduz no palácio associação de empreiteiros
que receberam R$ 1,1 bilhão de dívidas.
Os militares batiam, davam choques e insultavam na sessão de
tortura, mas vi muitos dizendo que me respeitavam porque deixei um bom emprego
para combatê-los com risco de vida.
O PT queria que eu abrisse mão exatamente da minha alma, e
me tornasse um deputado obediente, votando tudo o que o Professor Luizinho nos
mandava votar.
Os militares jamais pediriam isso. Desde o princípio, disseram que eu era
irrecuperável e limitaram-se à tortura de rotina.
Jamais imaginei que seria grato aos torturadores por
não me pedirem a alma. Não sabia que dias tão cinzentos ainda viriam pela
frente.
Que seria liderado por um homem que achava que Maurício de
Nassau era um deputado de Pernambuco. Logo eu, que sou admirador de um deputado
pernambucano chamado Joaquim Nabuco.
Foram os anos mais duros de minha vida. No meu caderno anoto frases e
indicações da semelhanças da luta contra a ditadura e da luta contra este
governo, desde que comecei a criticá-lo, com a importação de pneus usados.
As pessoas têm suas carreiras, seus empregos, sua racionalizações. É preciso respeitá-las, atravessar o deserto sem ressentimentos.
Agora, sobretudo, é preciso respeitar o sofrimento dos vencidos. Outro dia,
quando me referi a um núcleo na Casa Civil como um bando de ladrões que
atentava contra a democracia, uma jovem deputada do PT estremeceu.
Senti que não estava ainda preparada para essas palavras cruas. E fui
percebendo pelas anotações que talvez estejam aí, para o escritor, o mais rico
manancial de toda essa crise.
Como estão as pessoas do PT? Como se ajustam a essa nova realidade? Que destino tomaram na vida?
Procuro não confundir, entre os que ainda defendem o
governo, aqueles que são cínicos, cúmplices e os outros, que apenas obedeceram
as ordens sob a forma da aplicação do centralismo democrático.
Alguns defendem porque ainda não conseguiram negociar com
sua própria dor. Não podem suportá-la de frente. Mas terão de fazer algum dia,
porque, por mais ingênuos que sejam, já perceberam que a mãe está no
telhado.
Vamos ter de encarar juntos essa realidade. A grande experiência eleitoral da
esquerda latino-americana, admirada por uma Europa desiludida com Cuba e
Nicarágua, a grande novidade que verteu tintas...
...atraiu sábios, produziu livros e seminários, vai acabar na
delegacia como um triste fato policial de roubo do dinheiro público e suborno
de parlamentares.
Só os que se arriscarem a ir até o fundo dessa
abjeção, compreendê-la em todos os seus detalhes mórbidos, têm chances de
submergir para continuar o processo histórico.
Por incrível que pareça, o Brasil continua, e a vontade de
mudar é mais urgente do que em 2002 e Por isso, proponho agora um curto e
eficaz trabalho de luto.
Anotação final: começaram o espetáculo da CPI, secretárias e
suas agendas, ex-mulheres e suas mágoas, vampiros, sanguessugas, mensaleiros,
arapongas, tesoureiros e seus charutos, Vossa Excelência para cá, Vossa
Excelência para lá, sigilos bancários, telefônicos, emocionais.
Viu, Duda, que cenas finais melancólicas quando um mercador
tenta aplicar à complexidade da política a singeleza do vendedor de
sabonetes?
FIM MELANCÓLICO? Não, Lulla enganou o povo...
Fernando Gabeira
Texto veiculado no jornal Folha de S. Paulo
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