Dá para imaginar o que é isso? Ficar dias e dias na
escuridão total, encolhido entre o declive de um chão de pedra e a proximidade
de teto e paredes de rocha, cercado de água, sem saber se é dia ou noite. De
início, dividindo com mais 12 pessoas a parca ração de uma merendazinha.
Depois, sem ter o que comer. E sem saber se alguém lá fora tem noção do que se
passa.
De repente, brota da água uma luz. Uma voz estranha diz algo
num idioma que ninguém entende. Quase ninguém. Ainda bem que há um imigrante no
grupo. Bendito imigrante, a confirmar que alguém diferente sempre tem algo a
dar. É o único capaz de compreender e responder ao que o dono da voz diz em inglês.
Assim o jovem time de futebol dos Javalis Selvagens sabe que era alvo de
buscas, havia sido encontrado, e alguém lhes acenava com comida, remédios e o
fiapo de esperança de uma operação complicadíssima para tentar salvar o grupo
ilhado na escuridão das profundezas de uma caverna.
Ilhado até certo ponto. Homem algum é uma ilha, garantira um
poeta nesse mesmo idioma inglês há quatro séculos. O mesmo John Donne que
escrevera outras palavras que desde então têm lembrado a fraternidade,
solidariedade e igualdade entre todos os seres humanos: “A morte de cada homem
me diminui, pois sou parte da humanidade. Portanto, nunca procure saber por
quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”
Dando provas de que essa noção ainda não se perdeu e
continua viva na espécie humana, no exterior da caverna as pessoas faziam o que
estavam a seu alcance: se mobilizavam, rezavam, montavam a lógica racional de
uma incrível operação de resgate. Especialistas de outros países viajaram para
a Tailândia e se associaram aos esforços locais, disciplinados e objetivos, sem
perguntar o que ganhariam com isso ou de que etnia ou nacionalidade eram os
prisioneiros da caverna. Técnicos anônimos e milionários conhecidos ofereceram
o que podiam. E depois de semanas o planeta festejou o final feliz que parecia
impossível naquela tragédia anunciada. Homens comuns a consagrar a humanidade
comum de vítimas e heróis — incluindo o mergulhador que perdeu a própria vida
na luta para salvar as dos outros. Vitória possível a partir do profundo
sentimento da condição humana compartilhada. Todos homens comuns.
Impossível não contrastar essa consciência de destino comum
com a pretensão de se distinguir do comum dos mortais, exibida com acinte e
desenvoltura em uma operação de resgate montada do outro lado do mundo, num
plantão judiciário de domingo, simultâneo às últimas horas do esforço coletivo
heroico na Tailândia.
Mas talvez não devesse ser surpresa. O objetivo era soltar
Lula, alguém que não é visto como homem comum. Aliás, já ele mesmo atestara que
entende não haver essa natureza comum entre todos nós. Desde que, há tempos,
consagrou a doutrina de dois pesos e duas medidas quando afirmou de outro
ex-presidente: “O Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja
tratado como se fosse uma pessoa comum”, apesar de antes já ter se referido ao
político maranhense com pesados insultos e ofensas.
Mais recentemente, o condenado em segunda instância, agora
alvo da tentativa de libertação no domingo, fizera questão de frisar: “Eu não
sou um ser humano, sou uma ideia”. Ideias não são encarceráveis. Todos sabemos
(ou podemos imaginar com boa dose de realismo) que, mais cedo ou mais tarde,
Lula será solto por algum indulto — como José Dirceu, condenado a mais de 30
anos, está solto. Não ficará preso muito tempo — como Cabral e Cunha, por
exemplo, têm mais chance de ficar. A ideia que Lula encarna é mais poderosa que
a destes, reveste-se do charme de uma narrativa de Cinderela ou Robin Hood, e
tem mais seguidores escancarados. Embora também seja poderosíssima, a ideia
encarnada por outros, de encher os bolsos quando ninguém está olhando, não se
presta a defesas públicas, apoio de intelectuais, simpatia no exterior.
Explicitada, choca pelo cinismo, não é temperada e resgatada pelo mito.
Por isso, no fundo dessa caverna curitibana em cujas paredes
se projetam sombras míticas, dá para acusar o clarão vindo da realidade
exterior. A culpa é da luz. Sem ela, não se veria o mal nem haveria sombras.
Talvez até essa acusação possa colar. Ao menos em alguns setores, por algum
tempo.
De qualquer modo, mesmo que não se possa enganar a todos
durante todo o tempo, somos reféns da irresponsabilidade dos Três Poderes que
aprisionam o país. Não há como fugir da máxima de Millôr Fernandes: o resultado
é o que resultar. Para ele despencamos.
Ou dá para ter esperança de que brote das águas a cabeça de
alguém comum, trazendo uma luz e falando uma língua que a maioria de nós não
vai entender, mas que aceitaremos como um caminho para o resgate? Feito de
racionalidade e disciplina.
Nesse caso, ainda precisaríamos fazer como os Javalis
Selvagens : treinar o fôlego, aprender a nadar e mergulhar no desconhecido.
Seremos capazes?
Haja coração, como nos repetiram à exaustão nos últimos
dias.
O Globo, 21/07/2018
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Ana Maria Machado - Sexta ocupante da Cadeira nº 1 da ABL,
eleita em 24 de abril de 2003, na sucessão de Evandro Lins e Silva e recebida
em 29 de agosto de 2003 pelo acadêmico Tarcísio Padilha. Presidiu a Academia
Brasileira de Letras em 2012 e 2013.
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