Pouco me recordo de meu pai. Ficamos muito crianças eu e
minha irmã, eu com cinco anos, quando ele morreu. Lembro-me apenas que minha
mãe soluçava, os cabelos caídos sobre o rosto pálido e que meu tio, vestido de
preto, abraçava os presentes com uma cara hipócrita de tristeza. Chovia muito.
E os homens que seguravam o caixão andavam depressa, sem atender aos soluços de
mamãe, que não queria deixar que levassem o seu marido.
Papai, quando vinha da fábrica, me fazia sentar sobre os
seus joelhos e me ensinava o ABC com a sua bela voz. Era delicado e incapaz,
como diziam, de fazer mal a uma formiga. Brincava com mamãe como se ainda
fossem namorados. Mamãe, muito alta e muito pálida, as mãos muito finas e muito
longas, era de uma beleza esquisita, quase uma figura de romance. Nervosa, às
vezes chorava sem motivo. Meu pai tomava-a então nos seus braços fortes e
cantava trechos musicais que faziam com que ela sorrisse. Nunca ralhavam
conosco.
Depois que ele morreu, mamãe passou um ano meio alucinada,
jogada para um canto, sem ligar aos filhos, sem ligar às roupas, fumando e
chorando. Tinha ataques por vezes horríveis. E enchia de gritos dolorosos as
noites calmas do meu Sergipe.
Quando após esse ano ela voltou ao estado normal e quis
acertar os negócios de papai, meu tio provou, com uma papelada imensa, que a
fábrica era dele só, pois meu pai - afirmava com o rosto vermelho e as
mãos levantadas num gesto de escândalo - meu pai, meio louco e meio
artista, deixara unicamente dívidas que meu tio pagaria para não se desmoralizar
o nome da família.
Mamãe silenciou, coitada, e nos apertou nos seus braços,
pois nós tremíamos toda a vez que meu tio aparecia com a sua cara vermelha, a
sua barriga cultivada, a sua roupa de brim e aqueles olhos pequenos e
perversos.
Vivia passando as mãos pela barriga. O meu tio... Mais velho
que meu pai dez anos, cedo se tocara para o Rio de Janeiro, onde levou muito
tempo sem dar notícias e sem que se soubesse o que fazia. Quando os negócios de
meu pai estavam prósperos, ele escreveu a queixar-se da vida, dizendo que
queria voltar. E veio, logo após a carta. Papai deu-lhe sociedade na fábrica.
Veio com a esposa, tia Santa, santa de verdade, pobre mártir
daquele homem estúpido.
Papai vivia inteiramente para nós e para o seu velho piano.
Na fábrica conversava com os operários, ouvia as suas queixas, e sanava os seus
males quanto possível. A verdade é que iam vivendo em boa harmonia ele e os
operários, a fábrica em relativa prosperidade. Nunca chegamos a ser muito
ricos, pois meu pai, homem avesso a negócios, deixava escapar os melhores que
lhe apareciam. Fora educado na Europa e tivera hábitos de nômade. Esquadrinhara
parte do mundo e amava os objetos velhos e artísticos, as coisas frágeis e as
pessoas débeis, tudo que dava idéia ou de convalescença ou de fim próximo. Daí
talvez a sua paixão por mamãe. Com a sua magreza pálida de macerada, ela
parecia uma eterna convalescente. Papai beijava as suas mãos finas devagar,
muito de leve, com medo talvez que aquelas mãos se partissem. E ficavam horas
perdidas em longo silêncio de namorados que se compreendem e se bastam. Não me
recordo de tê-los ouvido fazer projetos.
Nós, eu e minha irmã, éramos como que bonecos para papai e
mamãe.
Quando meu tio chegou mudou tudo. Ele não fora à Europa e se
parecia muito com vovó, que fizera dos dezoito anos de vida em comum com meu
avô uma dessas tantas tragédias anônimas e horríveis que nascem do casamento da
estupidez com a sensibilidade. Dava nos filhos dos operários, o que não
admirava, porque, como murmuravam pela cidade, ele espancava a esposa.
Pobre tia Santa! Tão boa, amava tanto as crianças e rezava
tanto que tinha calos nos dedos, provocados pelas contas do rosário. Morreu, e
a doença foi o marido. Meu tio deflorara uma operária e fora viver com ela
publicamente. Santa não resistiu ao desgosto e morreu com o rosário entre as
mãos, pedindo a papai que não abandonasse o miserável.
A fábrica prosperou muito. Nunca consegui compreender por
que o salário dos operários diminuiu. Papai, fraco por natureza, não tinha
coragem de afastar titio da fábrica e um dia, quando tocava ao piano um dos seu
trechos prediletos, teve uma síncope e morreu.
[...]
Quando meu pai morreu e após meu tio declarar a nossa
miséria, fomos morar numa casinhola no começo de uma ladeira. Eu fiquei muito
mais perto do proletariado da "Cu com Bunda" do que da aristocracia
da decadente São Cristóvão.
Acostumei-me a jogar futebol com os filhos dos operários. A
bola, pobre bola rudimentar, fazia-se de bexiga de boi cheia de ar. Tornei-me
camarada de um garoto Sinval, rebento único de uma operária, cujo marido
morrera em São Paulo, metido numas encrencas com a polícia, não sei bem por
quê. Sei que os operários falava dele como de um mártir. E Sinval desancava os
patrões o que mais que podia. Franzino, os ossos quase a aparecer, possuía no
entanto uma voz firme e um olhar agressivo. Chefiava a gente nos furtos às
mangas e cajus dos sítios vizinhos. E toda vez que meu tio passava, cuspia de
lado. Dizia que apenas completasse dezesseis anos embarcaria para São Paulo,
para lutar como seu pai. Só muito depois é que eu vim compreender o que
significava tudo isso.
Frequentamos, eu e Elza, a escola. Mamãe fazia rendas e seus
pais ajudavam o nosso sustento. Quando fiz quinze anos fui trabalhar na
fábrica. Eu era então um rapazola forte, troncudo. O menino anêmico que eu fora
se transformara em um adolescente de músculos rijos treinados em brigas de
moleques.
Aparentava muito mais idade do que tinha realmente. Vivera
sempre entre molecotes pobres da cidade, pobre que eu era como eles. Agora ia
ser igual a eles completamente, operário da fábrica. Sinval não me diria mais
com seu sorriso mofador:
- Menino rico...
Cinco anos aturei na fábrica a brutalidade do meu tio.
Sinval, aos dezessete, vendera o que possuía em roupas e móveis e tocara para
as fábricas ou para as fazendas de São Paulo. A primeira e última notícia que
tivemos dele foi dois anos depois. Estava metido numa greve e esperava ser
preso a qualquer momento. Depois nem uma carta, nem um bilhete, nada. Os
operários afirmavam:
- Seguiu o destino do pai - e cerravam os punhos
enraivecidos. Mas a fábrica apitava e eles se curvavam, magros e silenciosos.
Minhas mãos estavam então calejadas e meus ombros largos.
Esquecera muito do pouco que aprendera na escola, mas em compensação sentia um
certo orgulho da minha situação de operário. Não trocaria meu trabalho na
fiação pelo lugar de patrão. Meu tio, o dono, estava bem mais velho e mais
vermelho e mais rico. A barriga era o índice da sua prosperidade. À proporção
que meu tio enriquecia ela se avolumava. Estava enorme, indecente, monstruosa.
Poucas fortunas em Sergipe igualavam nesse tempo à sua. Dava esmolas unicamente
ao convento (onde papava jantares) e ao orfanato. A este ele dava esmolas e
órfãs. Não se podia contar pelos dedos, nem juntando os dos pés, o número de
operárias desencaminhadas por meu tio.
Paixão que tive aos catorze anos por uma rameira gasta e
sifilítica, com a qual iniciei a minha vida sexual. Amor, aos dezoito,
platônico, por uma loura pequena do orfanato que foi ser freira, e enfim aos
vinte, o pensamento de me amigar com a Margarida, operária como eu. Isso deu
maus resultados. Meu tio andava também de olho na Margarida, que ostentava uns
seios altos e alvos, junto a um rosto de criança travessa. Margarida um dia me
contou que o patrão andava a apalpá-la. E ria, cínica. Eu acho que foi o seu
riso que me fez ir às fuças de meu tio. Estraguei-lhe a cara hipócrita. Fui
despedido.
São Paulo parecia à minha mãe e a Elza o fim do mundo. Por
nada deixariam que eu fosse para lá. Eu comecei a falar em Ilhéus, terra do
cacau e do dinheiro, para onde iam levas e levas de emigrantes. E como Ilhéus
ficava apenas a dois dias de navio de Aracaju, elas consentiram que eu me
jogasse, numa manhã maravilhosa de luz, na terceira classe do
"Murtinho", rumo à terra do cacau, eldorado em que os operários
falavam como da terra de Canaã.
Mamãe chorava, Elza chorava, quando me abraçaram na tarde em
que segui para Aracaju - tomar o vapor. Eu olhei a velha cidade de São
Cristóvão, o coração cheio de saudade. Tinha certeza de que não voltaria mais à
minha terra.
Os filhos dos operários jogavam futebol com uma bexiga de
boi cheia de ar.
(Fonte: ABL textos escolhidos)
Jorge Amado - Quinto ocupante da Cadeira 23 da ABL, eleito
em 6 de abril de 1961, na sucessão de Otávio Mangabeira e recebido pelo
Acadêmico Raimundo Magalhães Júnior em 17 de julho de 1961. Recebeu os
Acadêmicos Adonias Filho e Dias Gomes.
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