A negra
Florência era a pessoa mais conhecida de cidade. Era estonteante e mexia com a
vida de todas as criaturas – pedia comida pelas portas, entrava pelas casas sem
pedir licença e enrabava os meninos; entre outras patacoadas assustantes, como
borrar o rosto com batom e mijar no meio da rua, suspendendo a saia ensebada de
lodo. Com todas essas mazelas era negra bonita de corpo e de cara, com pernas
robustas e bem-feitas.
- Se não
for estudar a lição, vou chamar sinhá Florência!
Meu
primeiro encontro com ela deu-se numa tarde ensolarada, numa praça que me
parecia ampla, recoberta com bancos de areia. Eu vinha do centro da cidade acompanhando
minha mãe atufada de embrulhos, meio cansada e nervosa. Eu, lhe atormentando o juízo,
com um choro insolente, resmungando, blasfemando o peso de um pacote de açúcar
nos meus ombros esmirrados. Quanto mais eu andava mais o percurso me parecia
infinito, enquanto os bancos de areia me entulhavam os passos, parecendo que
meus pés não saíam do lugar ou andavam para trás. Nem vislumbrava ainda as
palmeiras próximas à minha casa nem as colinas peladas para as bandas do poente.
Tudo isso acentuava minha intolerância,
a vontade de fugir do areal queimando como fogo, entrando por meus chinelos de
couro cru finos como folhas de papelão. Transformado nesse trambolho crescia
minha revolta contra minha mãe; ela seria culpada por meu suplício aguentando
no lombo um pacote de cinco quilos, embaixo de um sol quente como brasa; sobre
ondas de areia movediça dificultando meus passos, enchendo meus chinelos,
triturando meus pés ameaçados por cãibras. Eu não reparava que minha mãe ainda
ia muito mais sacrificada. A momentos ela perdia a paciência e gritava:
- Anda
ligeiro, menino!
As
advertências me deixavam mais irritado e minhas malcriações me chegavam à
garganta.
- Não quer
andar depressa, não? Olhe sinhá Florência! – Acrescentou assustada, enquanto a
negra, a passos largos, aproximava-se.
Trajava
uma saia longa, rodada e florida de vermelho, e nua da cintura para cima. Os
seis duros da negra pareciam dois cones de pedra e os cabelos estavam eriçados
como de porco espinho. Aproximando-se, ela abriu os braços, soltou uma risada
esculhambada e deu para gritar nomes indecentes. Minha mãe, assustada,
agarrou-me por um braço, subiu numa calçada e invadiu uma casa, enquanto a
negra riscou atrás, rindo e xigando. O pacote de açúcar espatifou-se pelo chão.
Minha mãe ainda pode fechar a porta, sentando-se depois num sofá de madeira,
agitada e ofegante.
- Esta
negra é pior que o diabo! Credo em cruz! – exclamou. Momentos depois pude ver,
pela fresta de uma janela, a negra tumultuando no outro lado da praça,
arrodeada de gente e agarrada por dois soldados de polícia, ainda nua da
cintura para cima.
(LINHAS INTERCALADAS – 2ª Edição 2004)
Ariston Caldas
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